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segunda-feira, 28 de outubro de 2013

Crônicas de um mochileiro em Sucre

Sucre é a capital constitucional da Bolívia e La Paz a capital administrativa. Em Sucre, o "caminho" aproximava-se do fim. Após Sucre, viria Santa Cruz de la Sierra que serviria apenas de trampolim para me lançar de volta ao Brasil.
O encanto de Sucre  não dá as boas-vindas ao turista na rodoviária que não agrega beleza alguma e mais parece um mercado popular onde corredores estreitos abraçam milhares de pessoas que chegam e saem da cidade a todo momento. Cansado, com pouco dinheiro e de posse da informação de que o centro de Sucre é muito caro, resolvi hospedar-me num hostal próximo à rodoviária. Não recomendo. Não que o lugar seja ruim, mas o mochileiro ficará muito distante do centro e dos pontos turísticos da capital. Além disso, ônibus ou táxi são imprescindíveis para chegar ao centro. Fora isso, Sucre é essa cidade que resumirei nas próximas linhas.
O ar colonial encontra-se estampado nas ruas que fazem desfilar diante dos olhos atentos e, a um tempo, deslumbrado, uma inacabável série de casas, museus, bancos, estabelecimentos comerciais, artesanatos, cafés, restaurantes, praças, igrejas e tipos humanos que deixam o mochileiro se perguntando se ainda está na Bolívia, uma vez que os traços físicos, o comportamento delicado e sofisticado, as roupas e  os interesses musicais, literários e arquitetônicos mudam significativamente. Há uma altivez permitida e não agressiva no comportameto do habitante de Sucre que todos os dias desliza sua delicada elegância entre o patrimônio histórico conservado que a cidade abriga e as montanhas que coloca Sucre numa posição geográfica invejável: 2.800m (9.200 pés) acima do nível do mar. Logo, em qualquer época do ano, casacos, ponchos e luvas caem bem.
A cidade não dispõe de muitos passeios turísticos, não obstante, é possível informar-se sobre os poucos que dispõe nas agências que estão localizadas no centro histórico. Volto a dizer: Sucre é uma cidade cara. Até para o mochileiro que dispõe de um montante com certa folga, é possível que tenha que organizar bem as finanças para que evite perrengues financeiros. Só para ter uma ideia: o artesanato vendido em Sucre é um dos mais caros em toda Bolívia. As roupas tradicionais feitas da lã das llamas podem chegar a preços abusivos e vendidas em lojas de grife. Recomendo ao mochileiro com pouco ou muito dinheiro: ver e deixar lá.
As praças são bem cuidadas e raramente vemos lixo nas ruas. Antes, placas para que nativos e turistas cuidem das plantas, praças e lugares públicos de modo geral, espalham-se pela cidade. Eles têm um apreço tão genuíno pelas praças que podemos nos deparar com uma obra de arte verde como a da foto acima. Nessa praça, passava horas, lendo jornais, observando os comportamentos humanos e fotografando um detalhe, uma cena que despertasse o olhar.
Uma vez que Sucre dispõe de um parque reservado aos dinossauros que habitaram a região, é comum o turista ver elementos que se relacionam ao Parque Cretáceo, maior atração turística da cidade.
Por fim, penso que a organização, a valorização cultural e a educação para dividir o espaço físico vem do reconhecimento daquele que pode vir a ser primordial na formação do cidadão responsável por si, mas ciente do entorno que o cerca e exige dele igual responsabilidade: o professor. Fotografei esse monumento que faz uma justa homenagem ao educador e, na figura dele, todos os elementos relacionados ao processo educacional que não começa na escola nem no professor, mas implica a contínua construção e desconstrução de toda uma vida.
Cheguei ao fim, mas com um pressentimento sutil de que se tratava de um começo.
Santa Cruz de la Sierra foi meu último destino e ali deixei o solo boliviano trazendo a poeira de uma terra milenar toda feita de crenças, costumes, etnias e uma alma capaz de enamorar o mochileiro desavisado. É isso.




sexta-feira, 25 de outubro de 2013

O BUDISMO É UMA RELIGIÃO?


Por Michael McGhee, The Guardian, 07.10.2013. Michael McGhee é pesquisador sênior honorário no departamento de filosofia da Universidade de Liverpool e colunista no jornal britânico The Guardian.
Na primeira parte de uma nova série, examinamos a razão de muitos considerarem as práticas budistas mais filosóficas do que religiosas.
O que me atraiu inicialmente no budismo, nos anos que se seguiram ao meu lento afastamento do cristianismo formal, não foi nada de cunho intelectual, mas, diferentemente, teve relação com a imaginação, com imagens de liberação. Fiquei impressionado com a serenidade da figura do Buda, a sua representação de autodomínio e calma. Havia, no entanto, certo perigo envolvido nisso, a tentação de absorver, de modo demasiado fácil e precipitado, uma atitude que dependia de uma luta árdua e muitas vezes destituída de apelo ou atração evidente. No entanto, o Budismo era atrativo e parecia ser um meio de redescobrir alguma coisa aparentemente perdida, sem requerer adesão cega a crenças metafísicas ou religiosas.
Acho que o que faltava era a “espiritualidade”. Mas isso levanta a questão de saber se a “espiritualidade” pode ser separada daqueles comprometimentos em termos de crenças. Alguns especialistas têm enfatizado que não há falta de crenças metafísicas nas tradições budistas e que suas práticas e rituais se articulam a visões de mundo complexas e sofisticadas. Eles se perguntam se as práticas budistas realmente podem ser isoladas desse contexto mais geral sem que com isso ocorram danos à sua identidade. Eles indagam também se os Budismos encontrados no Ocidente contemporâneo tornaram-se desenraizados, privados do alimento necessário proveniente de suas raízes culturais e metafísicas. É bem possível que isso tenha ocorrido. Assim, as pessoas testemunham o valor terapêutico da meditação e o Serviço Nacional de Saúde do Reino Unido (NHS/UK) se coaduna melhor com uma psicoterapia baseada na atenção plena (mindfulness), do que com aquela que faz uso da prática cristã da oração, porque a primeira é uma técnica eficaz, com benefícios mensuráveis para a saúde e não é “religiosa”. Os pacientes não precisam de um fundo de crença religiosa para se estabelecerem em um local de meditação.
Alguns grupos contemporâneos fazem questão de insistir que o budismo não é “religioso” e o que eles parecem sugerir é, novamente, que o envolvimento em suas práticas não depende da adesão a crenças. Esses mesmos grupos, no entanto, também são bastante tradicionais nas suas linguagens e nos seus rituais e isso deve nos fazer hesitar quanto à avaliação do efetivo grau de desenraizamento das práticas. É verdade que muitos praticantes budistas contemporâneos têm feito um trabalho desconstrutor de mitos semelhante ao realizado pela geração prévia dos teólogos da “Morte de Deus”, os quais foram, eles próprios, acusados de converter o Novo Testamento em um inofensivo e pálido humanismo.
Contudo, uma coisa é buscar liberar a prática budista de visões de mundo insustentáveis ou pouco críveis, outra, bem diferente, é reduzi-la a uma mera técnica, ainda que de cunho terapêutico. Feita a redução, as acusações costumeiras aparecem: a meditação seria uma técnica de tranquilização – capaz de facilitar a execução do bombardeio ou de aguçar a eficiência de um capitalista predatório. A razão pela qual alguém pode querer sustentar que a meditação tem sido reduzida a uma técnica é que ela perdeu o seu enraizamento essencial como uma prática de preparação ética.
É tradicional distinguir aspectos ou formas de meditação em termos das que acalmam o egocentrismo ou as paixões comuns e dizer que estas preparam o praticante para a experiência budista essencial da iluminação ou despertar. No entanto, uma das tentações de ex-cristãos é pensar que o que eles podem encontrar no budismo é algum tipo de experiência transcendente. Isso, efetivamente, parece muito com certa nostalgia de Deus. Na verdade, se houver qualquer tipo de transcendência no budismo é uma questão de transcender o fechamento e a prisão do egocentrismo. O apaziguamento das paixões, em que o budismo está interessado, é a tranquilização que reduz o domínio daqueles sentimentos auto-centrados e egoístas que nos impedem de ver o que está diante de nós: a nossa própria condição real e a dos outros. Estamos cercados pelo mundo real, mas estamos preocupado demais – com nossas próprias paixões auto interessadas – para perceber isso.
Nesse caso, a prática budista torna-se uma forma de preparação ética, reduzindo as formas de preocupação auto-centradas que impedem uma preocupação com a justiça. Este aspecto levou alguns analistas a dizer que o budismo se apresenta mais como uma filosofia de vida do que como uma religião. Este contraste com a religião se baseia muito na assimilação da religião à crença religiosa e esquece os aspectos cerimoniais, rituais e comunitários das várias religiões, incluindo o Budismo.
Mais positivamente, porém, pensar o budismo como uma filosofia coloca essa tradição em diálogo com a antiga concepção da filosofia, que tinha como um dos seus componentes essenciais precisamente o que era chamado de prática ou exercício espiritual – as várias maneiras pelas quais alguém é capaz de libertar-se da ilusão e tornar-se mais capaz tanto de agir eticamente como, naturalmente, de recusar-se a agir, lastreado igualmente em motivos éticos. Vale a pena notar que os antigos filósofos tentaram viver em comunidades e pode-se pensar em uma comunidade filosófica – seja ela uma congregação cristã, uma sanga budista ou um grupo humanista – enquanto empreendimento voltado a proteger e apoiar as condições da percepção lúcida do mundo, transcendente das ilusões, a partir da qual pode emergir a ação moral.
Tradução de Sérgio Ferraz