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domingo, 25 de setembro de 2016

Reminiscência

Vivia absorta em recordações. Suspensa, como um trapezista que se mantém no ar em estado de êxtase, rememorava os fatos passados sem bater o olho. Imersa num pensamento que dava voltas em torno de si sem se desprender dos afetos envolvidos naquele último despertar amoroso, ela cedia seus instantes apenas ao passado. Imaginava cartas, lembranças de viagem, músicas, e-mails e tudo aquilo que ajudasse a aprofundar seu estado de irreversível fantasia. Encostada na parede do quarto que tinha os objetos cobertos por uma penumbra, segurava, com mãos trêmulas, as últimas linhas escritas por ele. Apartada de qualquer realidade que não fosse aquela feita de lembranças, deslizava o pé que caia languidamente sobre o chão que parecia fugir. A impressão que aumentava a galopes era de que um abismo se abria sob seus pés enquanto sua cabeça orbitava no vivido, nas reminiscências.
- Você fez o artigo da disciplina de linguística aplicada? - inquiriu na saída da Faculdade de Letras.
- Ainda não. Tenho priorizado outras disciplinas, respondeu lacônico.
- Eu também não fiz. E também me encontro sobrecarregada de trabalhos, mas se você quiser ir a minha casa à tarde, então, podemos traçar um esboço. - insistiu sem a intenção de pressioná-lo.
Ele assentiu, embora seu espírito metódico e disciplinado resistisse e optasse pela primeira opção que fora priorizar outras disciplinas. Não sabia de quem havia herdado esse comportamento orientado por uma racionalidade acima de qualquer sentimento e afeto. Não poderia ter sido, efetivamente, dos seus pais. Esses viviam à mercê de todo tipo de vento emocional, de maneira que raramente concluíam tarefas, cursos e afins. Além disso, as brigas eram tão frequentes que era impossível permitirem-se um momento de silêncio e reflexão necessários a reorganização da vida prática e emocional. Olhava-os de longe e, de repente, se via absorto em pensamento acerca da vida que queria para si. E essa vida excluía, em definitivo, aquela dos pais. Dono de uma seriedade e objetividade invejáveis, ele pagava o preço que um perfil assim exigia. Aquele rosto branco, esquelético e fantasmagórico era perfeitamente compatível com seu corpo esguio e andar compassado. Tudo nele remetia à racionalidade e parecia desprovido de sentimentos e emoções efêmeras e sem corporeidade passível de uma análise lógica e científica.
- Que horas posso ir a sua casa? - perguntou secamente.
- Eu te espero às 14h. - disse com voz sobressaltada porque já se dirigia à parada onde passava o ônibus CDU-Boa Viagem.
Ele fez um gesto com a cabeça que confirmava sua ida. Seguiu pelo campus quando finalmente chegou ao restaurante universitário. Tinha que apressar-se, pois não era dado a atrasos e se orgulhava quando diziam que era detentor de uma pontualidade britânica. Não mastigava e engolia às pressas para não perder tempo. Concluída a difícil tarefa de engolir aquela comida que distava enormemente daquela feita por sua mãe, deixou apressado o restaurante e tomou o primeiro ônibus que passasse em Boa Viagem.
- Fico feliz que tenha vindo. Entre, por favor. - ordenou polidamente.
O edifício ficava na avenida Ernesto de Paula e o apartamento era revestido de elementos da cultura pernambucana. Das paredes, pendiam pinturas de artistas da terra e num recanto da sala havia uma pequena réplica de uma escultura de Francisco Brennand. Na varanda, uma alfaia de maracatu e uma rede compunham um cenário quase inverosímel, não fosse o todo do apartamento que justificava cada objeto ali posto. Ele observava e digeria toda a decoração sem deixar entrever sua curiosidade e estranheza.
- Agradeço o convite. Se não se incomoda, gostaria que começássemos - disparou nervosamente.
- Sim. Você mora na Cidade Universitária e não pode ficar muito tempo. Daqui a pouco, o trânsito estará um caos.
Sentaram à mesa e começaram a folhear um livro sobre os fundamentos da Linguística Aplicada. Começaram discutindo conceitos centrais dessa disciplina.
- Você concorda com o autor quando diz que o ensino descontextualizado de gramática não contribui com a competência linguística do aluno? - perguntou para testar seus conhecimentos sobre os assunto, pois sabia que não dava o devido valor a essas questões pragmáticas.
- Sim, concordo. - respondeu impensadamente.
Ela percebeu que havia uma desordem instalada naquele diálogo. As reflexões não se encontravam e as palavras pareciam desnecessárias. Silêncios diziam mais e era nos intervalos entre uma palavra e outra que os verdadeiros significados explodiam. Um franzir de testa, um toque rápido na mão para chamar a atenção, um correr de olhos pelo corpo do outro e a cadência dos lábios revelavam o indizível. Era nos entremeios que a evidência de um amor que não se esgota apenas na amizade se manifestava. Naquelas palavras não ditas, todo o afeto reprimido se descortinava como num filme silencioso. Ele perdera a noção da hora. Ela esquecera que ele tinha que voltar à Cidade Universitária e que, a partir das 17h, o trânsito era um inferno cujas chamas se espalhavam pela cidade. Esquecidos dos compromissos que fizeram com que estivessem naquele apartamento numa tarde escaldante e sem previsão de chuva, beijaram-se. Espaço e tempo dissolvidos, a felicidade era a única realidade possível. Atualizavam o amor que sentiam um pelo outro naquele beijo. Ele afastou-se e, inquieto, tentava organizar seus papeis que não conseguia distinguir dos dela. Ela mantinha-se impassível diante dele, mas ele estava desorientado. Reuniu o que foi possível, pôs na mochila e saiu sem se despedir. Ela bateu a porta atrás de si ainda em êxtase. Nem procurou entender o que havia acontecido. Queria sentir; não entender. Estava tomada de um sentimento ainda não sentido e, por isso, queria prolongá-lo no seu corpo e mente. Desde quando alimentavam afeto tão peculiar um pelo o outro? Não conseguia refletir sem se desvencilhar daquela enxurrada emocional que inundava as ruas da razão que ainda subsistia. Paulatinamente, acalmou-se e passou a pensar em estratégias que poderia usar no dia seguinte. Eram débeis, algumas até infantis, ela sabia disso, mas era preciso desenhar um caminho que a levasse até ele sem que desse a entender que aquele beijo foi um contrato amoroso firmado e que agora ele teria que cumprir todas as cláusulas.  Sentada na cama, olhava fixamente a parede branca e procurava traçar os próximos passos naquela parede como se escrevesse numa lousa. 
- O jantar já está na mesa, filha. Não vai descer? - insistira a mãe. 
- Não. Preciso adiantar um artigo da faculdade que deve ser entregue amanhã.
- Vai esfriar, visse... - a mãe insistira sem expectativa.
Acessou a internet. Abriu a caixa de e-mail porque esperava visualizar uma mensagem dele discorrendo sobre a vazão de sentimentos que inundou aquela tarde. Nada. Abriu o site do jornal Folha de Pernambuco. Lentamente, como de costume, descia a barra de rolagem em busca de uma notícia que interessasse. Parou bruscamente. Nas Últimas Notícias: Jovem morre em acidente entre ônibus da empresa CRT e uma D20. Ajeitou-se na cadeira. Sentia que a testa ficara cheia de pequenas gotículas de suor, embora não estivesse suando. Hesitou em acessar a notícia e lê-la na íntegra. De repente, achou tudo isso uma bobagem e abriu a página com a serenidade de quem se prepara para ler um Neruda.
JOVEM MORRE EM ACIDENTE ENTRE VEÍCULOS NA AVENIDA CAXANGÁ
Estudante do curso de Letras da UFPE morre num acidente ocorrido hoje à tarde na Av. Caxangá. O ônibus da CRT que faz a linha CDU-Boa Viagem (Caxangá) foi atingido por uma Kombi que, segundo a polícia, era conduzida por um homem que se encontrava altamente alcoolizado. O corpo foi removido para o IML e aguarda liberação. O jovem morreu segurando um papel que os paramédicos do SAMU tiveram dificuldade em retirar da sua mão que se encontrava fortemente cerrada. No papel estava escrito em francês: "Tout ce qu´il reste: l´amour."

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