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domingo, 25 de abril de 2010

Amizade: encontro e partilha



Certa vez, um amigo escreveu que uma verdadeira amizade ou nasce no espaço de um relâmpago ou nunca nascerá. À época, dada nossa afinidade, fiquei encantado com essas palavras e era como se, através daquela declaração, visse retratada nossa própria história de amizade. Depois dessa experiência, procurei amigos e, no encontro com cada um deles, via as palavras do meu velho amigo se atualizarem como as águas de uma fonte que parecem as mesmas, mas inauguram sua novidade a cada experiência que temos delas. Embora as palavras do meu amigo se façam presentes em cada pessoa que cativo, a experiência não é a mesma, porque cada amor de amizade é único, irrepetível e traz a permanente alegria de uma música que enche os ouvidos, um livro que dilata o coração ou um espetáculo do crepúsculo num fim de tarde. Isso não tem teoria que explique nem metodologia que diga como deve ser feito. Apenas acontece.

Perdemos a capacidade de nos admirarmos com aquilo que faz da vida o lugar da festa; a festa do encontro cotidiano, da partilha da vida e dos passos que ficam pelo caminho. Lemos O Pequeno Príncipe e esquecemos sua mensagem, embora seja urgente para os dias de hoje. Vale lembrar que, nesse livro, o ensinamento da raposa “só se vê bem com o coração” não é mero sentimentalismo, mas condição imprescindível para que sobrevivamos todos os dias nesta terra de granito. Ou recuperamos essa capacidade de nos encantarmos pela vida, pelo outro, por aquilo que faz nossos dias, ou nos perderemos todos juntos. Segundo Clarice Lispector, esta é a verdadeira experiência de salvação: amor de amizade.



Amigo é antes de tudo alguém que não julga. É alguém que abre para você uma porta que talvez, jamais, abriria para um outro.

(Saint-Exupéry)

Na minha janela uma luz ficará acesa. Os braços do amigo estarão esperando.

(João XXIII, papa)

quarta-feira, 21 de abril de 2010

Um olhar sobre o feminino na literatura brasileira


Dando sequência ao post anterior que traz considerações sobre a obra A Hora da Estrela de Clarice Lispector, trago algumas palavras sobre Francisca Júlia, expoente da literatura de autoria feminina ainda desconhecida de muitos leitores.
Francisca Júlia da Silva nasceu em Xiririca(SP) no ano de 1871. Aos 14 anos, estréia como poetisa e aos 24 anos escreve seu primeiro livro, Mármores, obra prefaciada por João Ribeiro, consagrado crítico da época. Mais tarde, no ano de 1903, publica Esfinges, onde acrescenta alguns poemas inéditos aos já editados no primeiro livro. Escreve ainda dois livros em parceria com o irmão Júlio César da Silva: Livro da Infância (1899) e Alma Infantil (1912). Colaborou com jornais como O Estado de São Paulo, Correio Paulistano e Diário Popular, e periódicos do Rio de Janeiro com destaque para as revistas O Álbum e A Semana, especialmente.
A produção literária de Francisca Júlia arrancou daquele que foi o Príncipe dos Poetas, Olavo Bilac, as seguintes palavras de elogio e reconhecimento emocionado:
“Em Francisca Júlia surpreendeu-me o respeito pela língua portuguesa, – não que ela transporte para a sua estrofe brasileira a dura construção clássica: mas a língua doce de Camões, trabalhada pela pena dessa meridional, – que traz para a arte escrita todas as suas delicadezas de mulher, toda a sua faceirice de moça, nada perde
da sua pureza fidalga de linhas. O português de Francisca Júlia é o mesmo antigo português, remoçado por um banho maravilhoso de novidade e frescura”.
A poetisa foi parnasiana e simbolista; ora escrevia de acordo com a estética característica do Parnasianismo, ora aos moldes do Simbolismo.Como autêntica representante da escola que cultuou a forma, a beleza estética e a arte clássica, esmerou-se em provar que mulher sabia fazer poesia e poesia de qualidade e, desse modo, foi comparada à tríade parnasiana formada por Olavo Bilac, Raimundo Correia e Alberto de Oliveira e assemelhou-se a Heredia com os sonetos “Dança das centauras” e “Os argonautas”. Frustrando todas as expectativas, foi em suas mãos que a lira parnasiana encontrou a perfeita concretização das condições que o Parnasianismo francês, em tese, reclamava. A esse respeito, asseverou o crítico Péricles Eugênio: “(...) com efeito, é plástica e sonora; a poetisa professou a arte pela arte, conheceu o 'mot juste', desejou a austeridade formal e sobretudo timbrou em ser impassível, coisa de que os outros parnasianos brasileiros não fizeram questão”.
A despeito da singularidade da sua obra, Francisca Júlia não ocupa o lugar de destaque que lhe é devido nos livros didáticos, história da literatura e antologia literária. O desconhecimento da exímia poetisa é quase que completo nos cursos do ensino fundamental, médio e superior. Pesquisas realizadas em bibliotecas da cidade de Garanhuns(PE) dão provas suficientes do esquecimento dessa que foi um marco na literatura de língua portuguesa e que fez o prefaciador dos seus livros, João Ribeiro, declarar:
“Nem aqui, nem no sul nem no norte, onde agora floresce uma escola literária, encontro um nome que se possa opor ao de Francisca Júlia. Todos lhe são positivamente inferiores no estro, na composição e fatura do verso, nenhum possui em tal grau o talento de reproduzir as belezas clássicas com essa frieza severidade de forma e de epítetos que Heredia e Leconde deram o exemplo na literatura francesa”.
O silenciamento a que a mulher do século XIX foi submetida se estende aos dias atuais quando vozes poéticas, como a de Francisca Júlia, desaparecem do cenário da literatura brasileira, das bibliotecas, escolas, universidades e da memória do povo.
Sobre os versos cuidadosamente arquitetados pela “Musa Impassível”, afirmou Júlio Ribeiro, “sua poesia enérgica, vibrante, trazia a veemência de sonoridades estranhas, nunca ouvidas, uma música nova que as cítaras banais do nosso Olimpo nos haviam desacostumado”. Abaixo, um pouco da poesia de Francisca Júlia:

MUSA IMPASSÍVEL I

Musa! um gesto sequer de dor ou de sincero
Luto jamais te afeie o cândido semblante!
Diante de um Jó, conserva o mesmo orgulho, e diante
De um morto, o mesmo olhar e sobrecenho austero.

Em teus olhos não quero a lágrima; não quero
Em tua boca o suave o idílico descante.
Celebra ora um fantasma angüiforme de Dante;
Ora o vulto marcial de um guerreiro de Homero.

Dá-me o hemistíquio d'ouro, a imagem atrativa;
A rima cujo som, de uma harmonia crebra,
Cante aos ouvidos d'alma; a estrofe limpa e viva;

Versos que lembrem, com seus bárbaros ruídos,
Ora o áspero rumor de um calhau que se quebra,
Ora o surdo rumor de mármores partidos.

Mármores (1895)

sábado, 17 de abril de 2010

Uma leitura da construção de gênero em A Hora da Estrela



O romance A Hora da Estrela, escrito por Clarice Lispector em 1977, representa uma inovação estilística e de conteúdo ao se deslocar do universo íntimo para a realidade objetiva e tocar, desse modo, questões sociais de maneira mais explícita e declarada. O próprio narrador-personagem, Rodrigo S.M., afirma que se trata de história exterior e explícita (HE, p.33). A personagem-protagonista criada por Rodrigo S.M. chama-se Macabéa, mas atende por Maca, alusão aos macabeus, personagens bíblicas. Nordestina oriunda do estado de Alagoas, muda-se para o Rio de Janeiro onde alimenta o sonho de ser estrela de cinema e tem em Marylin Monroe sua referência de beleza e status social. Divide um quarto de pensão com quatro moças que paga trabalhando como datilógrafa. Namora Olímpico de Jesus, também nordestino, que trabalha como metalúrgico e aspira ascender socialmente. No decorrer da narrativa, Macabéa perde Olímpico para Glória, sua única amiga, pois esta possuía os atrativos materiais ambicionados por ele. A hora da estrela para Macabéa se dá quando é atropelada por um Mercedez Benz.
No romance de Clarice Lispector, Macabéa e Olímpico são representantes dos papéis atribuídos ao longo da história a homens e mulheres e que, por sua vez, têm na baliza de verniz sócio-cultural os parâmetros bem delimitados da sua construção. Macabéa é mulher, nordestina, medíocre, solitária, submissa e virgem. Olímpico é homem, nordestino (logo, cabra da peste), esperto, ambicioso e dominador. Essas características não são dadas por acaso, mas obedecem a toda uma lógica sócio-cultural-discursiva que tem origem no chão social em que pisam as personagens.
Macabéa é uma desconhecida de si mesma. Ignorante de sua identidade, ela não se conhece senão de ir vivendo à toa (HE, p. 35). Aprendeu a ser assim, como é. Nunca se perguntou: quem sou eu?, e se um dia o fizesse cairia estatelada e em cheio no chão (HE, p.36). Os tijolos que compõem seu edifício pessoal e sua feminilidade não foi ela quem os colocou, antes foram colocados pelos discursos que a gestaram, conceberam e ensinaram a ser como é, incompetente para a vida. Faltava-lhe o jeito de se ajeitar. Só vagamente tomava conhecimento da espécie de ausência que tinha de si mesma. Se fosse criatura que se exprimisse diria: o mundo é fora de mim, eu sou fora de mim” (HE, p.45). Ela é indiferente e ignora a própria identidade porque não a construiu nem foi-lhe dada oportunidade de participar desse processo. Ela não nasceu de si, mas da convenção social que a aguardava antes mesmo de vir ao mundo. Esse mundo fora dela já definira para si seu lugar social, suas atribuições profissionais (vale lembrar que ela é datilógrafa) e seu comportamento, (...) ela é doce e obediente (HE, p.47).

As implicâncias de gênero se fazem sentir a princípio no seu nome abreviado, Maca. Esse apelido é, “graficamente, quase idêntico à Maçã, sem os adornos sinuosos do til e da cedilha” (SÁ, 2000:271). Apesar de não trazer os enfeites gráficos da palavra maçã porque ela era subterrânea e nunca tinha tido floração (HE, p.52), a semelhança remete-nos ao fruto proibido que, segundo o relato bíblico, levou à queda de todo o gênero humano quando Eva e Adão o comem. Ambos pecam e são expulsos do paraíso, mas é sobre a mulher que recai o estigma da fraqueza moral. A culpa é culpa da mulher e não do homem. Macabéa traz esse estigma, de certo modo, representado na abreviatura do seu nome e entranhado nas vísceras da sua parca existência.
Após a morte de seus pais, ela passa a viver com uma tia que, além de maltratá-la, ensina-lhe a cartilha do comportamento social adequado às mulheres, de modo que, do contacto com a tia ficara-lhe a cabeça baixa (HE, p.50) e se lhe dava cascudos na cabeça era por que considerava de dever seu evitar que a menina viesse um dia a ser uma dessas moças que em Maceió ficavam nas ruas de cigarro aceso esperando homem (HE, p.49), além de que a queria para varrer o chão (HE, p.54). Assim sendo, Macabéa é talhada para ser ingênua, inocente e obediente. Seu mérito está em baixar a cabeça e obedecer resolutamente. Ela torna-se mulher na medida em que se enquadra pouco a pouco nos padrões sociais pré-determinados para aquelas que dividem consigo o mesmo chão. Age de modo automático, mecânico, irracional, ao ponto de esse não-saber pode parecer ruim mas não é tanto porque ela sabia muita coisa assim como ninguém ensina cachorro a abanar o rabo e nem a pessoa a sentir fome; nasce-se e fica-se logo sabendo (HE, p.50). Macabéa, embora o fato de vir a ser uma mulher não pertencesse à sua vocação (HE, p.49), aprendia, pouco a pouco, a sê-la.
Macabéa vê desfilar nas páginas da sua vida o discurso que a sociedade androcêntrica produz sobre a mulher, e introjeta a imagem construída por seus dominadores. A normatização e o controle social exercido sobre sua feminilidade faz com que se revista dos símbolos sócio-culturais que identificam o feminino na história. Sua satisfação está em reproduzir cotidianamente o papel imposto pela “casta” superior e concretizar na sua existência rala o projeto identitário silenciosamente gestado no útero da cultura. Rodrigo S.M. diz-nos que só depois é que pensava com satisfação: sou datilógrafa, e virgem, e gosto de coca-cola. Só então vestia-se de si mesma, passava o resto do dia representando com obediência o papel de ser (HE, p. 58).
A Hora da Estrela é um livro merecedor de releituras que, longe de esgotá-lo, abrem para possibilidades de sentidos ainda não desvelados.

sábado, 10 de abril de 2010

Quando a leitura é proibida


Embora já faça algum tempo, a notícia do recolhimento de 136.000 exemplares do livro Aventuras Provisórias das escolas públicas de Florianópolis ainda ressurge em minha cabeça e incomoda como um indesejável espinho no pé. O livro é do escritor catarinense Cristovão Tezza e ganhou vários prêmios que notabilizaram a obra e projetaram o nome de Tezza no cenário literário nacional. Até então, conhecia Tezza apenas pelos artigos publicados no campo da Linguística. Ele tem reflexões notáveis sobre o pensamento do filósofo russo, Mikhail Bakhtin. Trago essa memória para retomar um tema já tratado em outro post: o controle da instituição escolar sobre os livros e a leitura. Esse controle estende-se aos sentidos permitidos e legitimados pela instituição em detrimento daqueles considerados errados, toscos, desviantes ou subversivos.
A Gerência Regional de Educação do Sul de Santa Catarina justificou dizendo que o livro trazia muitos palavrões e descrevia atos sexuais. O que poderia ser uma justificativa tranquilizadora tornou-se alvo de inúmeras críticas que passaram pelo despreparo dos professores em discutir com os alunos do Ensino Médio da educação pública questões que são recorrentes na escola, bem como as novas formas de censura. Li vários posts em blogs literários que versavam sobre o assunto. Pensando cá com meus botões, acrescento uma outra motivação que não se encaminha pelo despreparo da escola e do corpo docente em lidar com o conteúdo da obra nem pela censura, mas pelo controle ideológico que se quer impor a qualquer tipo de comportamento subversivo que influencia atitudes que ameaçam desmantelar a ordem vigente. É isso que, de certo modo, encontra-se virtualmente presente na prática de falar palavrões: a ruptura com o instituído. O que estou focando aqui não é a prática em si, mas aquilo que ser quer evitar ao reprimir uma determinada prática ou proibir que se entre em contato com ela, mesmo que seja no universo literário. Não quero pôr em discussão o juízo de valor (correto/incorreto; moral;imoral/educado/mal educado) que socialmente se faz da prática de falar palavrões. Minha intenção é fazer refletir acerca dos mecanismos de controle e manutenção de uma ordem que se perpetua pela reprodução de práticas e conceitos que nunca são questionados nem subvertidos. O palavrão é justamente aquela ação que subverte uma ordem que não se quer ver alterada, transformada, abalada. Nesse caso, evitar o palavrão ou o contato com ele é apenas representativo de um mecanismo de poder que quer a todo custo, como diria Foucault, tornar os corpos dóceis, servis, adequados, e facilmente manipuláveis. Assim sendo, permitir que alunos em formação entrem em contato com personagens que subvertem um determinado estado de coisas ou uma norma social é prepará-los para futuras atitudes subversivas; é despertar neles a consciência de que aquilo que parece ser a ordem natural e peremptória para todos é passível de resistências e transformação. A fim de que isso não aconteça, a escola, instituição reprodutora da ideologia dominante, vigia e higieniza o ambiente escolar e a cabeça dos alunos para que a ordem estabelecida pelas classes dominantes prossiga entre nós sem problemas.



É uma pena que os alunos do Ensino Médio de Florianópolis tenham, entre outras coisas, perdido a oportunidade única de aprenderem com a literatura - e com os palavrões trazidos para a reflexão séria e consequente - a fantástica possibilidade que todo humano carrega de recriar aquilo que está posto, estabelecido como a única realidade possível. Embora queiram nos fazer acreditar que "sempre foi assim e assim deve ser pelos séculos vindouros", a arte literária nos coloca diante de uma outra porta: aquela que nos mostra que somos essencialmente seres de protest-ação na definição de Leonardo Boff e capazes de um mundo possível, mesmo que uma "aventura provisória." É apenas uma leitura (entre outras possíveis).

domingo, 28 de março de 2010

Quando a natureza mata



Outro texto que vale uma leitura atenta é este da escritora Lya Luft.

Quando a natureza mata

Menina do interior, tive a natureza como presença enorme em torno de casa e por toda a pequena cidade: paisagem, abrigo, fascinação, surpresa, escola de permanência, e também de transitoriedade. Mantive um laço estreito com esse universo, e quando posso durmo de janelas e cortinas abertas, para sentir a respiração do mundo. Porém, cedo também também aprendi que a mãe natureza pode ser cruel. Granizo perfurando folhas e arrasando a horta, geada castigando flores, raios matando gente. De longe, ouvia falar em terremoto, quando o vasto mundo ainda era distante. Agora que o mundo ficou minúsculo, porque o Haiti arrasado, o Chile destruído e a Europa nevada estão ao alcance do meu dedo no computador ou no controle da televisão, a velha mãe se manifesta em estertores que podem ser apenas normais (o clima da Terra sempre mudou, às vezes radicalmente, antes de virmos povoar este planeta), mas também podem ser rosnados de protesto, "ei, que estão fazendo comigo essas pequenas cracas que se instalaram sobre minha pele?"
Mas a natureza nao mata apenas com enchentes, deslizamentos, terremotos e tsunamis. Mata pela mão dos humanos, o que pode parecer um fato em escala menor, mas é bem mais preocupante. Homens, mulheres, e meninos-bomba quase diariamente se explodem levando consigo dezenas de vidas inocentes: pais de família, mães ou crianças, mulheres fazendo as feiras, jovens indo para a escola. Bandidos incendeiam um ônibus com passageiros dentro: dois morrem logo, outros vários curtem em hospitais o grave sofrimento dos queimados. Não tinham nada a ver com a bandidagem, estavam apenas indo para o trabalho, ou vindo dele. Assaltantes explodem bancos em cidades do interior antes tranquilas. Criminosos sequestram casais ou famílias inteiras e os submetem aos maiores vexames e terror. Como está virando costume, a gente agradece por escapar com vida.
Duas mães deixam num barraco imundo cinco crianças, algumas com menos de 6 anos. Sem comida, sem força, sem presença, sem a menor higiene. O policial que se encontra leva duas menorzinhas para casa, onde sua mulher lhes dá banho e comida. As crianças, de tão fracas, mal conseguem se alimentar. O homem chora: tem três filhos pequenos, e há algum tempo perdeu uma filhinha. A maldade humana agride até esse homem que com ela deve ter frequente contato.
A natureza, da qual fazemos parte, mata com muito mais crueldade através de nós do que através do clima ou de movimento de terra, e de maneira bem mais assustadora: pois nós pensamos enquanto prejudicamos nosso semelhante. Temos a intenção de atormentar, torturar, matar, mesmo que em vários casos seja uma consciência em delírio - estamos tão drogados que achamos graça de tudo. Mas somos responsáveis por nos termos drogados.
De modo que, como me dizia um amigo, o ser humano não tem jeito, não. Ou: esse é o nosso jeito, a nossa parte na natureza. De um lado, os cuidadores, que vão de pais e mães até médicos e enfermeiras; do outro lado, os destruidores, que são os bandidos, mas também (que tristeza) eventualmente pais e parentes. E contra eles, tanto ou mais do que contra a natureza não humana, somos impotentes. O que faz a criança diante do abandono materno? Em relação ao pai, tio ou irmão estuprador? O que fazem passageiros de um ônibus, pacíficos e cansados, diante do terror imposto por bandidos? Nada. Migalhas humanas soterradas por maldade e frieza, como num terremoto ou tsunami somos soterrados pela lama, pelos destroços, pelas águas.
Resta filosofar um pouco: de que vale a vida, quanto vale a minha, e como a usamos, se é que pensamos nisso? Pensar pode ser meio chato, e ainda por cima traz alguma inquietação. A natureza poderosa, encantadora e cruel também somos nós: que a gente não fique dos lado dos animais assassinos, como a orca, que depois de matar três pessoas continua, como foi anunciado, "fazend parte do time", no parque americano.
Antes de usar um adesivo "salve as baleias", eu quero um adesivo "salve as pessoas, que são parte da natureza."

LUFT, Lya. Quando a natureza mata. In: Revista Veja, ed. 2156, 2010.

Pensar o ser humano depois de Auschwitz



Este texto de Leonardo Boff compreende uma reflexão séria e emocionante sobre as atrocidades cometidas durante o regime nazista. Vale uma leitura!

Pensar o ser humano depois de Auschwitz
por Leonardo Boff *


Recordamos neste ano os 65 anos do Holocausto de judeus perpretado pelo nazismo de Hitler e de Himmler. É terrificante a inumanidade mostrada nos campos de extermínio, especialmente, em Auschwitz na Polônia. A questão chegou a abalar a fé de judeus e de cristãos que se perguntaram: como pensar Deus depois de Auschwitz? Até hoje, as respostas seja de Hans Jonas do lado judeu, seja de J.B.Metz e de J. Moltmann do lado cristão, são insuficientes. A questão é ainda mais radical: Como pensar o ser humano depois de Auschwitz?

É certo que o inumano pertence ao humano. Mas quanto de inumanidade cabe dentro da humanidade? Houve um projeto concebido pensadamente e sem qualquer escrúpulo de redesenhar a humanidade. No comando devia estar a raça ariana-germânica, algumas seriam colocadas na segunda e na terceira categoria e outras, feitas escravas ou simplesmente exterminadas. Nas palavras de seu formulador, Himmler, em 4 de outubro de 1943: "Essa é uma página de fama de nossa história que se escreveu e que jamais se escreverá". O nacionalsocialismo de Hitler tinha a clara consciência da inversão total dos valores. O que seria crime se transformou para ele em virtude e glória. Aqui se revelam traços do Apocalipse e do Anti-Cristo.

O livro mais perturbador que li em toda minha vida e que não acabo nunca de digerir se chama: "Comandante em Auschwitz: notas autobiográficas de Rudolf Höss"(1958). Durante os 10 meses em que ficou preso e interrogado pelas autoridades polonesas em Cracóvia entre 1946-1947 e finalmente sentenciado à morte, Höss teve tempo de escrever com extrema exatidão e detalhes como enviou cerca de dois milhões de judeus às câmaras de gás. Ai se montou uma fábrica de produção diária de milhares de cadáveres que assustava aos próprios executores. Era a "banalidade da morte" de que falava Hannah Arendt.
Mas o que mais assusta é seu perfil humano. Não imaginemos que unia o extermínio em massa aos sentimentos de perversidade, sadismo diabólico e pura brutalidade. Ao contrário, era carinhoso com a mulher e filhos, consciencioso, amigo da natureza, enfim, um pequenoburgues normal. No final, antes de morrer, escreveu: "A opinião pública pode pensar que sou uma béstia sedenta de sangue, um sádico perverso e um assassino de milhões. Mas ela nunca vai entender que esse comandante tinha um coração e que ele não era mau".Quanto mais inconsciente, mais perverso é o mal.

Eis o que é perturbador: como pode tanta inumanidade conviver com a humanidade? Não sei. Suspeito que aqui entra a força da ideologia e a total submissão ao chefe. A pessoa Höss se identificou com o comandante e o comandante com a pessoa. A pessoa era nazista no corpo e na alma e radicalmente fiel ao chefe. Recebeu a ordem do "Fuhrer" de exterminar os judeus, então não se deve sequer pensar: vamos exterminá-los (der Führer befiehl, wir folgen). Confessa que nunca se questionou porque "o chefe sempre tem razão". Uma leve dúvida era sentida como traição a Hitler.

Mas o mal também tem limites e Höss os sentiu em sua própria pele. Sempre resta algo de humanidade. Ele mesmo conta: duas crianças estavam mergulhadas em seu brinquedo. Sua mãe era empurrada para dentro da câmara de gás. As crianças foram forçadas a irem também. "O olhar suplicante da mãe, pedindo misericórdia para aqueles inocentes"- comenta Höss - nunca mais esquecerei". Fez um gesto brusco e os policiais os jogaram na câmara de gás. Mas confessa que muitos dos executores não aguentavam tanta inumanidade e se suicidavam. Ele ficava frio e cruel.

Estamos diante de um fundamentalismo extremo que se expressa por sistemas totalitários e de obediência cega, seja políticos, religiosos ou ideológicos. A consequência é a produção da morte dos outros.
Este risco nos cerca pois demo-nos hoje os meios de nos autodestruir, de desiquilibrar o sistema Terra e de liquidar, em grande parte, a vida. Só potenciando o humano com aquilo que nos faz humanos como o amor e a compaixão podemos limitar a nossa inumanidade.


Leonardo Boff nasceu em Concórdia, Santa Catarina, aos 14 de dezembro de 1938. É autor de mais de 60 livros nas áreas de Teologia, Espiritualidade, Filosofia, Antropologia e Mística. A maioria de sua obra está traduzida nos principais idiomas modernos.
( Artigo gentilmente cedido por www.verdestrigos.com.br)
Disponível em: http://www.letraselivros.com.br

domingo, 21 de março de 2010

A leitura e os leitores


Tenho ouvido com frequência reclamações que vêm de professores de Língua Portuguesa acerca da falta ou da deficiência dos alunos em leitura e compreensão de texto. Isso é verificado na dificuldade que os alunos geralmente apresentam em identificar informações no texto, inferir sentidos, relacionar elementos textuais etc. Essa constatação recebe o aval científico de pesquisas que têm sido desenvolvidas na área de Educação e Linguística, de modo que aquilo que é percebido por professores em sua prática didático-pedagógica diária recebe da academia os fundamentos apoiados por uma teoria e uma metodologia que permitem que se faça uma análise sistemática dessa realidade.
Por vezes, eu também julguei precipitadamente o comportamento leitor dos meus alunos e compactuei com a ideia de que eles não estão lendo. Após alguns anos em sala de aula seguidos de leituras e observação acurada da realidade leitora dos alunos, tenho mudado meu ponto de vista. Na verdade, tenho concluído que o aluno lê e o faz em demasia. Inserido num mundo cercado por uma diversidade crescente de linguagens, os jovens alunos deparam-se constamente com banners, cartazes, panfletos,faixas, outdoors, anúncios publicitários, imagens, etc (sem falar na quantidade de linguagens que acessam quando entram na internet). Poderíamos até dizer que há uma profusão e uma poluição de textos e imagens que bombardeiam os jovens leitores, deixando-os sem fôlego para dedicar-lhes uma leitura no sentido pleno da palavra. Isso é comprometedor de um processo que se quer crítico e ativo no sentido bakhtiniano. Mas, por outro lado, essa reicidência de contato com os textos do cotidiano derrubam o mito de que o aluno não lê.

A questão que tenho levantado é que quando se afirma que o aluno não lê, os professores o fazem a partir de um determinado padrão de leitura exigido e estabelecido pela escola que é a leitura dos clássicos. Desse modo, o problema não é a falta de leitura que, como já afirmei e continuo afirmando, o aluno realiza demasiadamente nas interações cotidianas com textos escritos e falados. O problema poderia ser fomulado da seguinte forma: em relação a que tipo de leitura o aluno é considerado um mau leitor? Com isso, não quero defender uma proposta que desconsidera a literatura clássica nas práticas escolares de leitura. Se assim o fizesse, seria incoerente com minha prática, uma vez que recomendo clássicos da literatura em atividades de leitura. Apenas defendo uma mudança de ponto de vista e de atitude diante do aluno, a fim de que não caiamos no desânimo por não conseguirmos êxito em nosso trabalho por acreditarmos que a falta de habilidade em ler e interpretar um Machado de Assis seja indicativo da falta de leitura e inabilidade para compreender todo e qualquer tipo de texto, inclusive o mundo ao seu redor. Acredito que é mais umas questão de excesso de leitura que de falta dela. Como já foi dito, a diversidade de linguagens e textos que se apresentam ao aluno no cotidiano não permite que lhes dedique uma leitura plena, global. Assim, o fato de não ler os clássicos da literatura ou os textos previamente determinados pela instituição escolar, não faz dele um mau leitor. A natureza da leitura não determina o nível de compreensão e o consequente posicionamento diante do mundo. Conheço pessoas que não tiveram leitura nenhuma, mas produzem as mais belas "verdades" acerca do mundo e dos homens (mulheres).

segunda-feira, 8 de março de 2010


Assisti recentemente ao filme "COCO antes de Chanel" de Anne Fontaine que foi indicado ao Oscar, mas não levou a estatueta. Até entendo que a Academia não é o parâmetro último e absoluto para avaliar e categorizar os filmes, mas, penso, sinceramente, que o filme merecia voltar com esse reconhecimento. Não deixem de conferir a fabulosa interpretação de Audrey Tautou. Oportunizo a sinopse do filme:

Duas irmãs num orfanato... Uma artista de cabaré... Uma humilde costureira... Uma cortesã jovem e magricela... Uma mulher apaixonada que sabe que nunca será a esposa de ninguém... Uma rebelde que considera as convenções de sua época opressoras...
Esta é a históra de Gabrielle "Coco" Chanel, que começa a vida como uma orfã e, ao longo de uma jornada extraordinária, torna-se a lendária estilista da alta costura que personificou a mulher moderna e tornou-se um símbolo atemporal de sucesso, liberdade e estilo.

Não tenho dúvida de que se trata de um prematuro clássico francês. Caro leitor, confira e tire suas conclusões. Desejo uma noite iluminada!

domingo, 7 de março de 2010


Durante a semana passada, após revisitar o quadro O quarto em Arles de Van Gogh, caí em pensamentos sobre a solidão. Esse quadro de Van Gogh dá a medida da solidão que era condição necessária à vida do pintor. A necessidade de proximidade humana fica declarada na escolha em pintar objetos duplicados. No decorrer da inúmeras internações pelas quais passou, Van Gogh aprofundou sua condição solitária e vivenciou a dor e o prazer de se fazer (ter sido feito) solitário.
O que me chama atenção ao refletir sobre conversas com amigos, letras de músicas e roteiros de filmes é que a solidão, geralmente, está associada a algo negativo que precisa ser solucionado, afastado, quando não, evitado. Contudo, esquecemos que a solidão faz parte da condição humana tal como o bem estar que sentimos quando estamos acompanhados. Em alguns casos, a solidão é até necessária, fundamental, para que possamos atingir determinados objetivos. Van Gogh é um desses gênios da arte que explorou a solidão (desejada ou não) e soube tirar dela as pérolas com as quais presenteou a humanidade. Mas não só ele. Enquanto escrevo lembro de outros solitários que, não fosse a solidão, dificilmente teriam garimpado o ouro de suas minas íntimas: Michelangelo, Caravaggio,Rembrandt, Leonardo da Vinci, entre outros. Para todos esses, a solidão foi imperativa e uma condição necessária.
Não fosse a solidão, Thomas Merton, monge trapista que optou pela vida eremita, não teria escrito os tantos livros que escreveu sobre espiritualidade nem as poesias que coloriram o jardim do mundo. Para Fernando Pessoa a solidão foi um campo fértil de onde colheu os frutos da sua produção literária. Ainda vale citar Clarice Lispector que, embora produzisse em meio às traquinices dos filhos, recolhia-se e lapidava a palavra que hoje encanta e desconcerta.
Em nossos dias, há todo um mecanismo ditado pelas novas tecnologias (a mídia, entre elas) que nos querem convencer de que a felicidade está onde os grupos se aglomeram. Essa mentalidade capitalista que rejeita toda e qualquer forma de solidão deve-se ao fato de que a manutenção desse sistema sempre foi garantida pelos grupos: a família, as grandes corporações, as igrejas, etc. Nesse emaranhado de coisas, o solitário é visto como um doente social que precisa ser tratado porque não se vislumbra no horizonte de sua vida a possibilidade de reprodução e manutenção de uma determinada ordem econômica e social.
Embora lancemos mão de tantas estratégias para driblar a solidão e hoje tenhamos tantos meios para evitá-la, ela é uma condição a que não podemos nos furtar. O que diferencia o solitário que somos de outros solitários é a maneira de vivenciar a parcela de solidão que nos cabe em vida. O escritor Herman Hesse,defensor fervoroso e explorador sagaz da solidão que o acompanhou, negou até o ocaso da vida toda e qualquer filiação às instituições que maculam essa condição humana fundamental e peremptória. Hesse descobriu que na solidão há cores tão vívidas quanto aquelas do quadro de Van Gogh. Isso é tudo.

sábado, 6 de março de 2010

O artista inconfessável

"O artista inconfessável" é o título de dois vídeos que trazem depoimentos de artistas sobre a poesia de João Cabral de Melo Neto. Além dos depoimentos de grandes nomes da música, da literatura e da dramaturgia brasileira, entre outros, os vídeos merecem ser vistos pela brilhante declamação de Adriana Calcanhoto. Por ora, disponibilizo um dos vídeos, porque não consegui fazer o upload dos dois. Segue endereço para que possam acessar: http://www.youtube.com/watch?v=Pc7mSYhPApI Aproveitem!