
Há uma composição de Antônio Cícero e Orlando Morais, interpretada por Adriana Calcanhoto no CD Cantada, que tem me chamado particular atenção nos últimos dias. Comprei o CD recentemente e ouvi todas as músicas assim que cheguei em casa. A voz melodiosa e aveludada de Adriana Calcanhoto nos deixa inertes, sob o efeito letárgico dos acordes do violão e das canções magistralmente compostas. Já adormecia quando escutei as primeiras notas do piano de Daniel Jobim que encheram o quarto de uma melodia serena, nostálgica. Em seguida, Adriana começa a cantar a poesia abaixo:
Noite
Vêm lá do canal
Reverberações
Vêm lá do canal
Reverberações
Do ladrar de um cão.
Uma dessas noites
Tudo vai embora:
Leve-nos,
Ladrão.
Abre-se o sinal
Sem ninguém passar.
É melhor ser vão
Tudo o que pontua
Nossa escuridão.
Eu, atento, escutava a música como quem recolhe orvalho, ou seja, gota a gota. Silencioso e com a atenção toda voltada para a canção fui recriando imaginariamente a situação figurada que letra e som sugerem. No momento que Adriana canta "Abre-se o sinal. Sem ninguém passar" fui tomado pela imagem de alguém num carro aguardando o sinal abrir sem outros ao seu lado, sozinho. Porém, quando o sinal abre a pessoa permanece parada, pois a desilução a impedem de progredir. Ela permanece estagnada, absorta em seus pensamentos, como alguém que está prestes a desistir de si mesmo. É uma imagem doída, envolta em solidão e escuridão. O som do piano acentua esse estado de alma e favorece a construção de uma imagem triste e sofrida.
De repente, acordei do êxtase provocado pelos recursos estilísticos e sonoros da canção e lembrei do escritor australiano Morris West quando seu personagem, o papa Kiril, escreve as seguintes palavras no seu diário pessoal: "O verão aproxima-se, mas há muitos homens sós e perdidos, para quem a vida é um contínuo inverno." O personagem da música atravessa esse inverno feito de garoa e névoa que turva a visão e fecha o caminho como uma cortina de cedro.
Essas foram minhas impressões da música "Noite". Por falar nisso, adentrei a noite e nem percebi que é hora de abandonar as palavras como foi abandonado o personagem do poema. É hora de dormir e deixar que o personagem da canção e as palavras encontrem um sentido que não seja idílico nem por demais real para que continuem construindo, desejando, chorando, mas caminhando.