
Hoje foi um dia daqueles! Mal acordei e já tinha uma avalanche de pequenas tarefas que me aguardavam ansiosas para serem executadas. Antes de levantar, passei alguns minutos pensando nas prioritárias, nas prorrogáveis e naquelas que, decididamente, não precisavam que me preocupasse com elas. Depois de uma manhã esmagada por compromissos inadiáveis, cheguei à parada de ônibus com malas prontas e um cansaço impossível de disfarçar. Troquei algumas palavras com um professor da UFAL,peguei o ônibus e cheguei à rodoviária disposto a desembarcar em Recife com fôlego suficiente para encarar a empreitada que me aguarda nos próximos dias. Para minha tristeza, não consegui vaga no ônibus executivo e tive que me submeter a seis intermináveis horas de viagem. O sacolejar do ônibus, as frequentes paradas para embarque e desembarque de passageiros, as obras que se estendiam ao longo da BR-101 e o calor contribuíram para uma viagem que mais parecia uma sessão de tortura. Como se não bastassem esses fatores, cometi o erro (imperdoável) de colocar meu livro na bagagem que não me acompanhou. Sem contar com a possibilidade de ler e irritado com aquela viagem entediante, lembrei de uma crônica do Luis Fernando Veríssimo chamada Fobias que trata do medo do personagem em não ter o que ler. Nessa crônica, o personagem recorre a diferentes peripécias para saciar sua sede de leitura. Não fui capaz de fazer o mesmo, mas compartilhei por seis horas das angústias descritas pelo personagem. Desci do ônibus aliviado e com a certeza do encontro com a palavra.
Fobias (Luis Fernando Veríssimo)
Não sei como se chamaria o medo de não ter o que ler. Existem as conhecidas claustrofobia (medo de lugares fechados), agorafobia (medo de espaços abertos), acrofobia (medo de altura) e as menos conhecidas ailurofobia (medo de gatos), iatrofobia (medo de médicos) e até a treiskaidekafobia (medo do número 13), mas o pânico de estar, por exemplo, num quarto de hotel, com insônia, sem nada para ler não sei que nome tem. É uma das minhas neuroses. O vício que lhe dá origem é a gutembergomania, uma dependência patológica na palavra impressa. Na falta dela, qualquer palavra serve. Já saí de cama de hotel no meio da noite e entrei no banheiro para ver se as torneiras tinham “Frio” e “Quente” escritos por extenso, para saciar minha sede de letras. Já ajeitei o travesseiro, ajustei a luz e abri uma lista telefônica, tentando me convencer que, pelo menos no número de personagens, seria um razoável substituto para um romance russo. Já revirei cobertores e lençóis, à procura de uma etiqueta, qualquer coisa.
Alguns hotéis brasileiros imitam os americanos e deixam uma Bíblia no quarto, e ela tem sido a minha salvação, embora não no modo pretendido. Nada como um best-seller numa hora dessas. A Bíblia tem tudo para acompanhar uma insônia: enredo fantástico, grandes personagens, romance, sexo em todas as suas formas, ação, paixão, violência, – e uma mensagem positiva. Recomendo “Gênesis” pelo ímpeto narrativo, “O cântico dos cânticos” pela poesia e “Isaías” e “João” pela força dramática, mesmo que seja difícil dormir depois do Apocalipse.
Mas e quando não tem nem a Bíblia? Uma vez liguei para a telefonista de madrugada e pedi uma Amiga.
– Desculpe, cavalheiro, mas o hotel não fornece companhia feminina...
– Você não entendeu! Eu quero uma revista Amiga, Capricho, Vida Rotariana, qualquer coisa.
– Infelizmente, não tenho nenhuma revista.
– Não é possível! O que você faz durante a noite?
– Tricô.
Uma esperança!
– Com manual?
– Não.
Danação.
– Você não tem nada para ler? Na bolsa, sei lá.
– Bem... Tem uma carta da mamãe.
– Manda!
(VERISSIMO, Luis Fernando. Banquete com os deuses: cinema, literatura, música e outras artes.
Rio de Janeiro: Objetiva, 2003. p. 97-98)