Nos últimos dias, tenho refletido sobre os diferentes mecanismos de produção de sujeitos a partir das práticas de controle (intervenção) do(no) corpo. Essa reflexão acentuou-se após a leitura de dois textos escritos por Tais Luso (disponível em seu blog "Porto das Crônicas") e pela escritora Lya Luft (publicado na revista Veja).
Não é de hoje que o corpo tem servido a diferentes formas de sujeição e controle. Só para citar um exemplo: na Idade Média, o corpo era submetido a inúmeras práticas de penitência que iam da abstinência do alimento ao ato de inflingir ao corpo um sofrimento físico pela mortificação mediante uso do cilício, dentre outros instrumentos penitenciais. Assim, o penitente, submetido a uma série de orientações, doutrinas e leis morais produzidas ple Igreja, aplicava ao corpo a penitência capaz de restituir sua amizade com Deus mediante a expiação do seu pecado. Desse modo, nos diferentes momentos históricos, o corpo tem sido alvo de ideologias, instituições e mecanismos de poder que intervêm no sentido de manipulá-lo e torná-lo dócil - no dizer de Michel Foucault. Naquilo que temos chamado de pós-modernidade, o corpo é o palco onde desfilam os discursos que tecem suas formas e modelam seus contornos. Esses discursos advêm de diferentes lugares sociais, institucionais, e, aqui, gostaríamos de destacar a mídia como veiculadora de discursos ligados a diferentes instituições que "dizem" sobre o corpo e normatizam sobre o modo de vivenciá-lo. Assim, o corpo é uma construção para o qual convergem os "dizeres" produzidos na história e postos em circulação pela mídia. Por isso, pode-se dizer que o corpo é simbólico e rico de significados que podem ser lidos no livro da história e dos discursos que o constroem.
Constantemente somos bombardeados por propagandas e anúncios que prometem milagres como a volta aos anos dourados da nossa juventude e/ou adolescência; a conquista do corpo exuberante e saudável sem marcas, rugas, estrias, varizes; a possibilidade de escolhermos a cor dos olhos, da pele, dos cabelos e a saúde que nos garantirá vida longa. Sobre o corpo também planejam, desenham, edificam e modelam ,conforme o desejo do cliente. Com promessas de pôr fim à velhice e seus consequentes incômodos, as indústrias produzem remédios, cremes e uma gama de produtos capazes de disfarçar o desgaste dos anos, mas, nunca, de neutralizá-lo. O processo continua acontecendo por trás das camadas cada vez mais espessas de cremes de todo tipo e para todos os fins.
Assim, fazem-nos acreditar que torneando pernas, mudando a cor dos cabelos, definindo o peito e frequentando a academia "da hora" seremos iguais à modelo que todas as semanas sai em todas as capas de revista sob o título "corpo perfeito" ou ao ator que faz sucesso com a mulherada porque nenhum "deus grego" consegue superá-lo. Dizem ainda que, se assim o fizermos, seremos nós mesmos e, enfim, felizes como nunca fomos. Por trás desses discursos, toda uma indústria da massificação produz sujeitos que vivem e pensam da mesma maneira e, a um tempo, apaga as diferenças a fim de jogar para debaixo do tapete as desigualdades que não se escondem sob o acúmulo de plásticas e doses cada vez mais fartas de anabolizantes.
Atendendo à ordens como "Modele hoje seu corpo", "Faça a plástica que sempre sonhou" ou "Coma bem sem neura", acreditamos que temos o controle e a iniciativa das nossas ações quando não passamos de soldadinhos que encontram-se à mercê das instruções da mídia. Abrimos os jornais e lá estão os anúncios tentadores de produtos que alteram a forma corporal; acessamos a internet e as ofertas de serviços a favor do corpo perfeito são inúmeras; andamos pela rua e outdoors, banners e panfletos nos convencem que somos sempre um pouquinho menos bonitos que o cara que posa num anúncio de calças de grife. O resultado disso é um sem número de neuróticos, insatisfeitos, desesperados porque não conseguem atingir o padrão exigido e único capaz de tornar a todos felizes e plenos. Sob pretexto de que estamos cuidando do corpo porque nos amamos, aplicamos uma vigilância severa e o esculpimos sem descanso. Essa é a senha para fazermos parte daquela parcela da sociedade considerada normal, embora o preço seja a diluição da identidade em fôrmas que reproduzem um único modo de encarnar a vida e se relacionar com o corpo. Será que é assim que tem que ser? Ou somos porque nos dizem que temos que ser desta ou daquela maneira? Nesse emaranhado de discursos, dizeres, sentidos e ideologias até esquecemos quem somos e passamos a ser a mulher da capa de revista ou o cara do outdoor. Nada mais além disso. Lutamos tanto para sermos diferentes e não passamos de iguais que se perdem por não afirmar a diferença que nos faz singulares. Ser singular... Essa é toda beleza.
Se não falas, vou encher o meu coração com o teu silêncio e agüentá-lo. Ficarei quieto, esperando, como a noite em sua vigília estrelada com a cabeça pacientemente inclinada. A manhã certamente virá; a escuridão se dissipará, e a tua voz se derramará em torrentes douradas por todo o céu. Então as tuas palavras voarão em canções de cada ninho dos meus pássaros, e as tuas melodias brotarão em flores por todos os recantos da minha floresta. (Rabindranath Tagore)
2 comentários:
Oi, Luciano, gostei muito do teu texto, e sinto-me lisonjeada por citar-me junto à maravilhosa Lya Luft.
É verdade: chegamos num ponto que o corpo talvez valha mais do que a cabeça. Mas não levará muito - para aquelas que fazem da beleza, o centro de suas vidas -, caírem em depressão. Esquecem que o envelhecimento faz parte da vida, e que devemos estar preparadas com algo que nos dê um maior sentido para enfrentar nosso 'crepúsculo'.
Sempre, a indústria da beleza dará continuidade ao seu ciclo, à procura de novas presas.
Sermos um pouco vaidosas, cuidar dos exercícios, da nossa alimentação é algo saudável; falo da obsessão, daquele exagero doentio e fútil; da imitação; de muitas chegando aos horrores – que nos mostram a anorexia e bulimia - em prol de uma beleza equivocada.
Beijos, Luciano.
Tais Luso
"Lutamos tanto para sermos diferentes e não passamos de iguais que se perdem por não afirmar a diferença que nos faz singulares. Ser singular... Essa é toda beleza."
Luciano, o seu texto é bem construído e parece produto de reflexão profunda.
Consideraria um pouco mais, não para acrescer ao que se basta; para apenas me juntar ao seu discurso, porém.
Não sei se caberia um paleontológico ou um ancestral, mas existe em nossas emoções um devotamento à simetria, considerada muitas vezes como expressão de beleza. Penso muito nisso... muito...
Como disse, o seu texto é bastante.
Felicidades, cara!
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