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sábado, 3 de março de 2007

Mais uma crônica do mestre Paulo Gervais



"E os que não marcham, nem sacolejam, nem vão atrás dos trios elétricos?"


Sábado. Fui a uma loja no centro da cidade para fazer umas compras. Primeiro ao me dirigir ao vendedor da loja, senti que quase gritava e que ele tinha dificuldade para entender o que eu queria; depois eu mesmo corria pelos corredores da loja como se estivesse fugindo de alguma coisa, e ele inquietava-se tentando inutilmente atinar com os detalhes do meu pedido. Na hora de fazer o pagamento, a fila, com apenas uma pessoa na minha frente, parecia ter cem e demorar-se infinitamente para andar, e a atendente olhava-me compadecida, quase pedindo desculpas. Eu suava. O cenho franzido, os olhos quase fechados. O coração batendo numa aceleração de bicho acuado, disposto a correr ou a matar. O que eu via e ouvia que me deixava assim não devia me deixar assim e mais do que isto: fazia promessas de pacificar o meu espírito! Levantado num palco, adornado por indefectíveis bolas de sopro (Ó coloridos ventos!!) e abastecido por enormes caixas e instrumentos de som, alguém gritava (ainda que dissesse estar cantando...). E se era para me convencer de alguma coisa, suas palavras não chegavam para constituir um argumento, e se era para tocar a minha alma, tudo que logravam obter de mim era a vontade de não estar ali. O que quer essa gente afinal, gritando assim em praça pública o seu credo pessoal? (a praça que é de todos, inclusive dos que não crêem...?). Em que lei, ou razão, ampara-se o comportamento de uma pessoa ou instituição que, embora seja livre para dizer e praticar a sua fé, o faz contra o direito dos outros ao silêncio e à privacidade? Como se justifica dar a alguém o direito de gritar tão alto (ainda que seja o nome de Deus, ou do que é justo ou verdadeiro...) que em redor os outros se incomodem na sua privacidade (não consigam dormir, ou ler, ou assistir tv, ou ficar em silêncio, ou trabalhar, ou dizer as suas orações no recolhimento da sua casa?) e instalar-se no espaço público interceptando as pessoas como se elas tivessem que dar-lhes ouvidos? Que espécie de gente é esta que quer impor-se pela altura do som da sua voz, como se os outros, incomodados, é que devessem retirar-se? Aqui não vai uma crítica à fé, mas à maneira de manifestá-la, contrariando um princípio básico da vida social, que no Brasil se orienta pela natureza laica e democrática do Estado: somos diferentes uns dos outros, e deve ser garantido a cada um de nós, sem distinção, sentir, pensar e fazer respeitando o outro. A lei, produzida pelo Estado, deve ser o limite do exercício da nossa liberdade. A lei sim, contra os despotismos de toda natureza: político... ou religioso. A consciência livre é a arma que o cidadão deve manter engatilhada contra a tentação dos absolutismos, a tentação de ceder à maioria, de fazer por que todo mundo faz, de ser por que todo mundo é. É necessário dizer não. Ser do contra, no corpo e na alma, na vida privada como na vida pública, para salvaguardar a dignidade do homem... e de sua fé (seja ela qual for). Amém?

sexta-feira, 2 de março de 2007

A difícil arte de ensinar.


Não sou professor de longa data, embora exerça o magistério desde que ingressei na faculdade. Mas, como não faz muito tempo que colei grau, então, isso faz de mim um professor que engatinha na difícil arte de ensinar.

Cada dia é um desafio revestido da imprevisibilidade peculiar aos indivíduos que formam o nosso público, os alunos. Cada aluno representa uma história prestes a ser contada. São como pergaminhos que se desenrolam à nossa frente e que lemos, tantas vezes, com o mesmo dissabor que lemos um livro de autor indesejado. Sua vida é tosca, seu comportamento é agressivo, sua perspectiva é estreita e o respeito por aqueles que cuidam da sua educação é anêmico. Nisso, há a parcela de culpa do aluno e há aquela que cabe à instituição. No que tange à instituição, temos a falta de compromisso, responsabilidade e criação de um lugar agradável onde o aluno sinta prazer, e não obrigação em se encaminhar todas as manhãs para o estabelecimento de ensino. Tantas vezes o faz como se estivesse se dirigindo ao matadouro.

Por outro lado, a profissão tem sua riqueza. Nós, professores, temos, todos os dias, a possibilidade única e singular de conhecer nossos limites e nos reconhecermos frágeis. Desse modo, abandonamos a imagem de homem infalível que ostentamos e, tantas vezes, representamos. Somos todos falíveis. Na sala de aula fazemos a experiência diária da nossa falibilidade.

Descubro, na relação com eles, que indiferente, agressivo, indisciplinado, rude e egoísta também sou. Lembro que não tenho, como eles, a mesma energia, curiosidade, sonho, desejo e força. Olho para meus alunos e, por vezes, anseio ter as características que os fazem diferentes de mim. E lembrar que um dia eu tive as mesmas inquietações, as mesmas dúvidas, as mesmas perguntas e os mesmos dilemas. Basta lembrar que um dia tive a mesma coragem de transgredir e que, foi nesse momento de inversão da ordem, que verdadeiramente aprendi.