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segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

Sobre "As amizades particulares"


Há filmes que não nos abandonam e sempre voltam à memória quando refletimos acerca de determinadas questões existenciais. Isso acontece também com livros, músicas e pinturas que desencadeiam reflexões pontuais e aos quais retornamos quando mencionamos um assunto ou nos perdemos em pensamentos específicos. No decorrer destas linhas, lembrei das recordações de Hermann Hesse ao ouvir a Marcha Fúnebre de Chopin. No livro Felicidade (1999), Hesse descreve uma situação em que recorda, subitamente, um camarada - como ele mesmo gosta de chamar - da escola que se suicidou e teve seu cortejo acompanhado pela Marcha Fúnebre. Anos depois, ao escutar a música, Hesse é tomado pelas lembranças e sentimentos que o envolveram quando avistava o cortejo desfilar pelas ruas de Tübingen. É um texto belíssimo, cujo trecho foi usado por mim em uma crônica que escrevi sobre a morte da cantora Cássia Eller logo após a tragédia que abreviou sua vida.
Mas voltemos ao filme. As amizades particulares (Les Amitiés Particulières), dirigido pelo francês Jean Delannoy, conta a história de amizade entre dois adolescentes num colégio católico. O filme é baseado no romance autobiográfico do escritor francês Roger Peyrefitte e traz no elenco nomes como os de Francis Lacombrade, Didier Haudepin, François Leccia, Dominique Maurin, entre outros. O ano de lançamento é 1964.
Vivendo como internos em um colégio católico de reconhecido rigor, os adolescentes Georges de Sarre (Francis Lacombrade) e Alexandre Motier (Didier Haudepin) constroem uma afeição que poderia ser descrita nas palavras citadas por Oscar Wilde em Escritos do Cárcere: "o amor que não ousa dizer seu nome." Embora usem de estratégias as mais diversas para manter-se longe da desconfiança e perseguição dos padres, a afeição entre os dois torna-se evidente e é efetivamente flagrada na estufa onde se encontravam. Exposta a relação, resta cuidar da amizade sincera que nasceu entre os muros do seminário, a fim de que não arrefeça nem se apague com a saída de um dos alunos: Georges de Sarre. Infelizmente, a astúcia de um dos padres é infalível em separar os alunos. Essa artimanha sacrossanta trará uma consequência trágica ao aluno mais novo que prefiro descrevê-la nesses versos de W. H. Auden:

Funeral Blues

Pare os relógios, cale o telefone
Evite o latido do cão com um osso
Emudeça o piano e que o tambor surdo anuncie
a vinda do caixão, seguido pelo cortejo.
Que os aviões voem em círculos, gemendo
e que escrevam no céu o anúncio: ele morreu.
Ponham laços pretos nos pescoços brancos das pombas de rua
e que guardas de trânsito usem finas luvas de breu.
Ele era meu Norte, meu Sul, meu Leste e Oeste
Meus dias úteis, meus finais-de-semana,
meu meio-dia, meia-noite, minha fala e meu canto.
Eu pensava que o amor era eterno; estava errado
As estrelas não são mais necessárias; apague-as uma por uma
Guarde a lua, desmonte o sol
Despeje o mar e livre-se da floresta
pois nada mais poderá ser bom como antes era.

O filme de Delannoy é um verdadeiro poema à amizade indistinta e incondicional. A relação vivenciada por Roger em sua adolescência e narrada no livro "Les Amitiés Particulières" é uma prova material de que o amor não pode ser encarcerado em fórmulas canônicas ou catecismos, embora os cães de guarda da Igreja Católica assim o queiram.
Acredito que seja um post propício ao penúltimo dia do ano porque é um post que fala de amor: palavra muito dita, mas pouco vivida. Em 2011: AMOR.

domingo, 26 de dezembro de 2010

Recife em fotos e olhares








Não há cidade do Nordeste que me encante mais que Recife. A cidade tem uma energia e uma vibração que a diferenciam das demais capitais nordestinas em aspectos que vão além da organização estrutural, demografia, espaço territorial etc. Só ousaria compará-la a Salvador, mas os laços afetivos que mantenho com Recife não o permitem. Morei em Salvador durante dois anos, senti a força espiritual e cultural que a cidade emanava, mas não consegui amá-la como Recife. Salvador é um tipo de cidade que, de tanto aparecer na mídia escrita e falada por ter um potencial turístico já consolidado no cenário nordestino,antecipa para os visitantes as belezas que prendem o olhar. O Pelourinho, embora reserve encantos que só se revelam no contato visual, físico, real, é, de certo modo, um tanto previsível. Recife não. É necessário pisar seu chão com delicadeza, sentir as paredes de seus prédios históricos, cantar sua música lentamente, atravessar suas pontes com olhar atento ao panorama que as cerca, a fim de conhecer uma cidade que se desvela aos olhares que não correm céleres sobre suas ruas, praças, rios, pontes e maracatus. Só conhece Recife quem a olha, nunca quem a vê somente. Em fotos, apresento um recorte da cidade de Clarice Lispector, Manuel Bandeira, Chico Science, Paulo Freire e tantos outros.


quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

Coleção: Chico Buarque



Chico Buarque é um ícone da música popular brasileira. Isso é incontestável. E o que declaro seria um lugar comum, um clichê, não fosse a surpreendente força do trabalho desse artista que nos faz repetir em coro a citada declaração sem que nos sintamos cansados ou prolixos. Essa força vem da beleza e da versatilidade do seu trabalho que incide sobre campos variados. Compositor, intérprete, músico, escritor: essas são algumas das suas ocupações. Mas sabemos que não fica por aí. Chico tem vida e talentos tão diversos quanto sua obra.
Para aqueles que são fãs incondicionais e aguardavam o relançamento das pérolas musicais com as quais presenteou os ouvidos dos brasileiros e brasileiras durante décadas, a Editora Abril - sob orientação do próprio Chico - selecionou os vinte melhores CDs da carreira do artista que poderão ser encontrados toda semana nas livrarias e bancas de revista. Até o momento foram lançados dois: Chico Buarque de 1978 e Construção de 1971. O preço de lançamento foi R$ 7,90, mas a partir do segundo esse valor aumentou para 14,90.
A caixinha do CD feita em capa dura e com imagem reproduzida do trabalho original em vinil traz um encarte com fotos (raras), boxes e texto que contextualiza as condições históricas, sociais e pessoais de produção das músicas. Além disso, o fã poderá contar com uma pequena biografia e letras das músicas.
Comprei os dois primeiros e aguardo o próximo que chegará amanhã. É uma coleção imperdível!

quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

A experiência Couch Surfing


CouchSurfing é um site que se encaixa no que se chama hoje de redes sociais. Embora apresente características comuns a outros sites de relacionamento, como Orkut e Facebook, CouchSurfing apresenta algumas peculiaridades:
a)CouchSurfing não é um site de relacionamentos (embora alguns o usem para esse fim). Quando falo em relacionamento, refiro-me ao amoroso. Nesse ponto, vale esclarecer que a experiência CouchSurfing é uma experiência essencialmente relacional. Isso parece contraditório, mas não é, uma vez que os membros do CouchSurfing estabelecem relações de outra ordem que são determinadas pelos objetivos do projeto e que não são propriamente amorosas;
b)CouchSurfing implica uma experiência de convivência humana muito mais fina e intensa que aquelas possíveis em outra redes. Esse aspecto justifica-se pelo fato de que os membros do site se dispõem a hospedar (disponibilizam o sofá, nos termos do site) pessoas que viajam. Com isso, CouchSurfing possibilita a seus membros uma experiência que vai além da troca de afetos como vivenciada no Orkut e/ou Facebook. Quem recebe o viajante (ou mochileiro) divide com ele o mesmo chão e rotina. Por sua vez, o hóspede retribui de maneira não material, mas vivencial, compartilhando sua experiência de vida (social, cultural, intelectual). Assim, viaja quem hospeda e aquele que é hospedado. As trocas são recíprocas e espontâneas.
c) Couch Surfing, embora seja um site que tem a hospedagem como objetivo predominante, esse objetivo não é o único. Outras ações podem ser mobilizadas pelos usuários, como o Coffee and Drink. Essa opção permite que os membros combinem encontros com a finalidade de conversarem e conhecerem novas pessoas. As pessoas as quais me refiro, compreendem os membros pertencentes a uma determinada localidade ou pessoas que estão passando por ali.
Penso que CouchSurfing representa uma diluição extrema de fronteiras, bem como a materialização daquilo que poderíamos chamar de relações globais. A experiência CouchSurfing permite abrir as portas para o mundo e isso não se dá apenas simbolicamente, mas concretamente. Além da superação de fronteiras, CouchSurfing impõe uma condição que tem ficado esquecida num mundo em que o medo é imperativo: a confiança. Talvez represente uma resposta às constantes investidas de uma mentalidade corrente que levanta muros entre as pessoas porque, de acordo com essa mentalidade, o outro é visto/entendido como uma ameaça às seguranças das quais acredito estar cercado. Couch Surfing restabelece a confiança perdida e estabelece uma maneira de relacionar-se com o outro em que a confiança e a partilha são condições indispensáveis a bem sucedida experiência do chão humano compartilhado.