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quinta-feira, 12 de dezembro de 2013

O Lado Oculto da Viagem



Ele estava atônito. Corria de um lado para o outro, ensandecido, pensamentos confusos, distraídos. Ainda não havia absorvido toda a tragédia daquele momento nem conseguia acreditar que por um segundo, talvez menos, aquilo poderia ter sido evitado. Seu rosto suava, não sabia que direção tomar nem decidir por uma ação que conseguisse salvar o irmão que agonizava dentro do carro. Súbito, pensou em como seria a vida e qual o desfecho daquela cena vermelha, caótica e prestes a desembocar em outros dramas. Não havia nada de idílico. Não havia imaginação, fantasia, embora sua cabeça atordoada misturasse tudo isso. Havia uma situação empírica, prosaica: um jovem de 20 anos estava com seu cotovelo prensado nas ferragens de uma D-20. Curiosos começaram a parar, mas não ofereciam ajuda. Outros, porém, encheram-se de compaixão por aquele miserável que agora desmaiado já não via nem sentia nada. O trabalho árduo de retirar aquele braço fincado entre ferragens esgotou os homens que trabalhavam com empenho. Exaustos, seus rostos suavam e os pingos cravavam sementes no chão daquela estrada. Quem sabe a esperança nascesse dali, daquele trabalho esmerado e sem intervalo. Braço fora das ferragens, corpo desfalecido, instala-se a tensão. Quem levará o jovem a Recife, cidade mais próxima do ocorrido, para receber os primeiros socorros? Pessoas afastam-se. Seguem seu rumo e procuram esquecer a cena para que a consciência não os torture. Um homem pede que levem o ferido e deponha seu corpo no banco de trás do seu carro. Durante o percurso, discutem para onde levar aquele cujo braço se mantinha atado ao corpo por um pouco de músculo e pele. Hospital particular e cirurgia que durou oito horas. Ao longo das horas, pai, irmã, irmão e cunhado aguardam nervosos e com uma ansiedade estampada que não deixava dúvida acerca da gravidade da lesão. O efeito anestésico passa e, aos poucos, o jovem volta à consciência. O ambiente lhe é estranho porque, segundo sua memória, sua vida parou no percurso, no vento no rosto, nas faixas passando e deixando "um mundo" para trás. Não se assustou. Não fez alarido. Não reclamou. Nem mesmo perguntou: - O que aconteceu? Seus olhos embaçados seguiam a entrada organizada da família que veio ter com ele e esclarecer o que para ele ainda era uma espécie de sonho ruim durante um cochilo que dera durante a viagem. Até então, ele achara que havia sido uma fratura simples e não fez estardalhaço. Pensava que aquela volta para casa duraria dois ou três meses e que aquelas ataduras, gesso e tipoia que tanto incomodavam na hora de dormir seriam retiradas em um mês e logo voltaria às suas atividades. Enganou-se.

"De alguma forma sobrevivi à noite. E ressurgi com o dia. "
(Emily Dickinson )

quarta-feira, 11 de dezembro de 2013

Os Sapatinhos Holandeses e o Amor de Amizade

Estávamos no verão de 1999. Eu morava em Salvador e, por dois anos, vivenciei a dor e a alegria de viver numa cidade que apresenta desigualdades tão gritantes. No que toca à alegria, isso ficou por conta da minha amizade com Gregório, monge beneditino do Mosteiro de São Bento da Bahia.
Dom Gregório, como era chamado no mosteiro, tinha um sorriso largo, fácil, uma disposição invejável, uma inteligência singular que permitia que transitasse pelas artes plásticas, canto, literatura, instrumentos, administração etc. Acrescento os cursos que ministrava no Brasil e exterior, a Holanda, p.ex.
Quando voltou da Holanda me procurou e trazia algo na mão que era difícil distinguir. Ao se aproximar, vi que era um par de sapatos tipicamente holandês. Recebi o souvenir agradecido e sentamos para conversar sobre a viagem, o curso, a Holanda. Ele me contou histórias hilárias sobre o cotidiano de Amsterdam. Entre uma risada e outra, passava o olhos nos sapatinhos holandeses que pareciam de  porcelana, mas certamente foi trabalhado com outro material. Na frente, um moinho de vento (um símbolo da Holanda) pintado em azul escuro que ganha nuances mais delicadas em alguns pontos. Nos lados, Holland e no restante dos graciosos sapatos, trevo de quatro folhas, pétalas, bolinhas. Uma fita com as cores da bandeira holandesa amarra o par. Consegui na internet uma imagem com um par bastante parecido:
Além dos sapatos, trago as cartas que trocávamos quando se encontrava em férias e os livros que trazem dedicatórias que tinham a mesma medida da delicadeza que deve ter uma amizade.
Fui embora. Voltei a Garanhuns e trouxe comigo os significativos sapatos. Desde então, morei em muitas cidades e sempre levo comigo aquele par de sapatos que são pendurados na parede do meu quarto. Assim, é possível lembrar daquela amizade que pisou o chão da minha existência e deixou sulcos profundos porque sincera.