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quinta-feira, 11 de setembro de 2008

Sobre nosso tempo

O poeta parece ter dito o óbvio: “o tempo não pára”. O que soa óbvio para muitos não o é para aqueles que se detiveram em refletir sobre essas palavras que mais parecem abrir para o mistério, a opacidade, que para evidências que se deixam facilmente encontrar. O tempo do poeta não coincide necessariamente com o tempo cronológico, marcado pelas horas que se sucedem e correm céleres sem permitir que tiremos o olho do relógio para sentir o tempo que não é aquele ditado pelas horas, mas aquele que reúne presente, passado e futuro no instante mesmo das nossas vivências cotidianas. Para o poeta, esse tempo não pára de acontecer, embora não o percebamos e, por isso, estejamos sempre correndo atrás do tempo ou reclamando do tempo que passou. Assim, o tempo é esse instante-já – no dizer de Clarice Lispector – que aglutina passado e futuro no presente que não é marcado pelas horas, mas pela vivência profunda e pela experiência do tempo como mergulho no mar sem fundo nem limites da vida. É estar sempre no tempo fazendo a experiência de si, do outro e do cotidiano e, de modo algum, correndo atrás do tempo, deixando o tempo passar ou perdendo tempo. Assim sendo, não é preciso correr atrás do tempo porque ele está sempre aqui e é desde sempre presente, passado e futuro. Ilude-se também quem pensa que o tempo passa, porque ele não passa, ele fica na mesma medida da experiência que fazemos dele. Por último, não se perde tempo, vivencia-se o tempo, pois, qualquer experiência, negativa ou positiva, é imediatamente acrescentada ao nosso tesouro pessoal que se acumula à medida que estabelecemos uma relação significativa com aquilo que nos acontece.
Bem, essas palavras sobre o tempo introduziram a reflexão que povoava meus pensamentos enquanto tentava dormir. A bem da verdade, pensava sobre como as pessoas têm vivenciado seu tempo e das repercussões disso na nova ordem das relações interpessoais que parece se estabelecer de uns anos para cá. Na ocasião, lembrava de alguns momentos bastante significativos da minha adolescência quando contava com 14/15 anos. Não sei se estou certo - e titubeio em admitir que expresso uma certeza sobre valores, vivências, comportamentos, porque cada época tem suas certezas que norteiam vivências – mas tenho uma ligeira impressão de que há 10/15 anos atrás as pessoas vivenciavam melhor o seu tempo, digeriam melhor o momento e, por isso, eram capazes de construir relações mais significativas e laços mais duráveis. Penso que a pressa e a lógica da nova ordem social nos colocaram num permanente estado de alerta pelo tempo que passa, que se perde e atrás do qual devemos correr infatigavelmente. Não sei se desse modo temos ganhado tempo ou temos perdido no sentido de que não fazemos a experiência do tempo que se inaugura impreterivelmente nessas tomadas de consciência de quem sou eu, de quem é o outro e da busca de significado para os instantes vividos. Banalizamos o contato humano, superficializamos o encontro, demos às costas ao que há de belo e gratuito na relação com o outro, evitamos a vida e, por tudo isso, caímos num abismo vazio de sentidos e valores, embora contemos para nós mesmos que somos plenamente felizes porque é melhor alimentarmo-nos de uma ilusão que refazermos a vida e torná-la mais fecunda.
Enquanto digito essas palavras, passa-me pela memória momentos nunca esquecidos e que chegam aos milhares e desordenadamente como que uma enxurrada que não cessa de correr. São momentos que você não recorda ou conta como que por obrigação ou porque foram espetaculares, sensacionais e dignos de aparecerem no Fantástico, Faustão, Domingo Legal ou qualquer um desses programas sensacionalistas que manipulam os fatos a seu bel-prazer, mas porque dada a sua simplicidade e caráter vivencial, reflexivo, imprimiram um sentido à vida. Recordo, num tom saudosista, de cartas enviadas e escritas, de declarações feitas ao ouvido (publicamente ou por escrito), da mão no ombro, do olhar discreto com o canto do olho, do encontro marcado, das mãos dadas, do passeio sob a neblina, das risadas gratuitas, da palavra que sossegava o coração, dos passos dados (sem pressa), do cair da noite, da vida partilhada, dos sonhos que povoavam as conversas sempre tão delicadas, das cobranças (porque não ligou, não escreveu, não deu a atenção desejada), do flerte a um tempo cheio de desejo e carinho, dos livros e músicas em comum, do papo na janela, das brincadeiras infantis (mas nunca idiotas e vazias), daquilo que não fez, mas poderia ter feito e, por isso, se arrependeu e pediu desculpas sempre pronto para recomeçar. Se hoje perdemos tudo ou perdemos algumas dessas coisas é lamentável porque é o que dá fôlego novo à vida. Agora se, para alguns, isso parecer careta, antiquado ou qualquer coisa do tipo, peço que, por favor, não hesitem em dizer, pois prefiro uma exortação à indiferença com a qual somos obrigados a conviver nos dias atuais. Já não existe a cumplicidade e companheirismo de antes, as cartas não chegam mais, as mãos se soltaram, os passos são dados sozinhos, o passeio hoje recebeu outro nome e chama-se navegar, mas não pense você que é navegar por mares nunca dantes navegados como queria o poeta, mas por um mundo distante e sem vínculo real onde não se vê, não se toca, no se escuta os passos do outro que caminha ao seu lado, os risos calaram-se e transformaram-se em “carinhas” nas maioria das vezes descaradas que são mais fontes de mal-entendidos que produção inteligível de sentidos, partilham-se mentiras como o nome falso, a idade que não tem, o corpo que não carrega e esqueceram de apresentar a vida em sua verdade e transparência. No mais, o sonho hoje se sonha só e não mais como recomendou o poeta, o flerte quase que desapareceu e quando existe não tem mais a finalidade de conhecer o outro, mas de sugar-lhe o sangue e depois deixá-lo caído qual vítima de vampirismo. Se o tempo urge, então, o melhor mesmo é queimar etapas e, desse modo, passa-se logo para o beijo que mais tem gosto de sabe-se lá o quê misturado com indesejável momento posto que mal deu-se ao trabalho lento, mas saboroso da conquista que tem começo, meio e fim e não apenas fim. Mas, a lógica corrente é que o tempo não pára e, por isso, não há tempo a perder com conversas tolas. Afinal de contas, que conteúdo tem-se hoje para iniciar uma boa conversa? As pessoas se informam cada vez menos, os livros de literatura somem das estantes ou nem chegam a ocupá-las, a música que se escuta mais aliena que liberta e o filme que se vê nem vale a pena falar porque os roteiros são tão previsíveis, repetidos e destituídos de material que leve a pensar ou enriquecer o conhecimento do espectador que não passa de mais um entre outros. Quem não sabe como começa e termina Superman na sua recente versão? Bem, sem possibilidade de olhares que se encontram, de uma conversa interessante e de um beijo desejado, parte-se para a última etapa e, depois de abocanhar a presa, passa-se imediatamente para a próxima vítima que, como eu, caça e é caçada com a mesma avidez desinteressada. Nesse jogo de gato e rato, evita-se o encontro e, desse modo, a vida é negligenciada naquilo que tem de melhor: a vivência, gota a gota, do tempo que orvalha sobre nossas cabeças antes do sol da nova (des)ordem nascer.
Que um dia encontremos todos juntos o céu que nas palavras do poeta Rimbaud era o encontro do sol com o mar. Acrescento outro elemento a essa definição do poeta e digo que o céu é o encontro do sol com o mar, mas não apenas desses, uma vez que não há céu sem a presença do outro. E aqui o outro não significa apenas a pessoa humana de carne e osso, mas tudo aquilo que dá sentido à vida e que passa também pelas experiências diárias mais corriqueiras. Assim sendo, o céu é o encontro do sol com o mar e da experiência que o tempo sempre já ontem, hoje e amanhã me permite fazer desse encontro.