Total de visualizações de página

terça-feira, 3 de julho de 2007

PALAVRAS SOBRE CLARICE


Pensar Clarice é pensar os limites da condição humana, ou seja, aquele instante em que nos flagramos pressionados pela interpelação que nos chega da realidade, da subjetividade, do mundo espiritual, do outro. Assim sendo, suas personagens travam durante o desenrolar da narrativa uma relação dialética com o seu entorno que as afeta e desconforta porque incomum, inabitual, estranho. A relação com a alteridade é sempre uma relação contraditória, ambígua e tensa que as faz percorrer níveis diferentes de desequilíbrio na busca da felicidade e do conhecimento de si.
A obra de Clarice é marcada pela introspecção e pela sondagem do “eu”. Não um “eu” psicológico, ou seja, um “eu” que se traduz no comportamento do sujeito, mas um “eu” metafísico, que no seu entorno e a partir dele, faz a experiência da transcendência. Em A Paixão Segundo G. H., Clarice Lispector enuncia que “além do mais a ‘psicologia’ nunca me interessou. O olhar psicológico me impacientava e me impacienta, é um instrumento que só transpassa. Acho que desde a adolescência eu havia saído do estágio do psicológico” (1998:26). A experiência metafísica das personagens claricianas consiste na absorção do mundo e de tudo que é humano pelo “eu”. Ela irrompe do cotidiano, do mundo, do outro, da vida e da morte. Nas suas narrativas cada acontecimento humano, mundano e cósmico é integrado à experiência individual e se reveste de um sentido outro que não aquele imediato e efêmero, mas o que desencadeia um fluxo de consciência que lança o personagem num estado de reflexão que leva à inflexão em busca do equilíbrio existencial. Bosi (1995:424) diz que “há na gênese dos seus contos e romances tal exacerbação do momento interior que, a certa altura do seu itinerário, a própria subjetividade entra em crise. O espírito, perdido no labirinto da memória e da auto-análise, reclama um novo equilíbrio”. A auto-análise de que fala Bosi é precedida pela epifania, ou seja, aquele instante que para Umberto Eco apud Sá (2000:175) “lhe recordava demais um ‘momento de visão’, no qual alguma coisa se revela”. Esse momento epifânico é crucial na vida das personagens claricianas, uma vez que é nesse instante-já que há uma tomada de consciência que revela o desejo essencial furtivamente presente em suas vidas.
A relação de Clarice Lispector com a palavra é uma relação metalingüística, pois constantemente reflete, discute, polemiza e põe em questão o próprio ato de escritura, o próprio fazer literário. Olga de Sá (2000:155) afirma:

Já ficou bastante claro como é importante, na obra de Clarice Lispector, a perspectiva metalingüística do narrador. Não só ele questiona o código, quando procura palavras no dicionário e declara que não sabia que na gíria a palavra ‘galinha’ tinha outro sentido. Mas questiona continuamente a própria narrativa, a essência do ato de escrever, enquanto é preciso usar palavras.


A narrativa se desenvolve numa atmosfera em que a o código lingüístico e seu manuseio é fator de especulações filosóficas, bem como de indagações sobre a estreita relação entre palavra e realidade física e subjetiva. Clarice Lispector confere, ao ato de escrever e ao uso da linguagem para criar mundos hipotéticos, a função instigante de revelar(se), a partir do universo íntimo dos seus personagens, as mazelas sociais, os conflitos existenciais, as crises identitárias, as lutas de classes e a dor humana mais contundente, condição necessária para que se possa vislumbrar o sol de um novo dia, repleto de possibilidades de ser.