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segunda-feira, 30 de maio de 2016

A Visita

Ele não era de receber muitas visitas. Talvez, por isso, desacostumou-se a elas. Quando aconteciam, era por que havia convidado para um jantar ou para reunir amigos que compartilhavam com ele o gosto por boa música e conversas pausadas por vinho, cerveja ou aquilo que dispunha. Habituou-se a ser companhia de si mesmo e, até onde se sabe, nunca se deixou desamparado. Não se voltava contra aquilo que a vida havia reservado e preferiu reconciliar-se com o momento; quer fosse de festa, euforia e vozes que ecoavam longe, quer fosse do mais absoluto silêncio. Não vivia só, pois acreditava que seus livros, discos e filmes rodeavam seus passos, adentravam seus pensamentos, tranquilizavam (ou não) sua mente.
Era manhã e se encontrava na escola onde trabalhava. Dedicado às demandas do seu trabalho, não lhe sobrava tempo para acessar caixa de e-mail e redes sociais. Aproveitando-se de um privilégio nem sempre concedido durante as horas que passava no ambiente de trabalho, resolveu abrir a caixa de e-mail. Nem sempre tempo livre significava permissão para fazer qualquer coisa que não estivesse ligado ao trabalho, mas esse pequeno espaço de tempo foi aproveitado para subverter a rotina que havia criado para si. Descendo os olhos que passavam por spams, congressos, solicitações e mensagens pessoais, ficou atônito ao deixá-los cair num e-mail identificado por Felipe Trindade. Ajeitou-se na cadeira, desligou-se do movimento ao redor, retomou a atenção que havia caído em confusão e leu o assunto deslizando a vista sobre as letras como se analisasse um texto feito para ser avaliado. O assunto trazia uma proposta de venda de uma coleção de filmes do Charlie Chaplin. Clicou sobre e leu o conteúdo com redobrada atenção. Era mesmo uma oferta e pedia resposta urgente. Enviou uma resposta afirmativa, embora não soubesse se o valor da coleção iria comprometer o orçamento do mês que nem sempre permitia extravagâncias ou mesmo pequenos gastos.
Felipe era um amigo que não via há certo tempo. Naquele momento, não saberia mensurar quanto tempo, mas tinha por certo que ver o velho amigo o faria muito feliz. Felipe não demorou a responder e confirmou ida a seu apartamento naquele mesmo dia após o expediente. Levaria os DVDs para que fossem testados, pois eram de segunda mão. No teor do e-mail, nenhuma palavra sobre amizade, ausência, saudade. Apenas a confirmação de uma transação comercial e nada mais. Mas isso não importava. Preferiu ressaltar a importância da visita de um amigo que fora tão significativo e, de repente, distância, ausência de contato, lembrança de momentos que estavam ancorados longe daquele dia em que tudo se atualizaria e a amizade seria retomada.
A campainha toca. Não tem dúvida que é seu amigo à porta, pois não costumava atrasar. Um cumprimento formal marcou a recepção. Trazia consigo uma sacola que logo identificou tratar-se dos DVDs.
- Tudo bem? - perguntou num tom meio formal. Parecia receber alguém que havia ido levar uma encomenda qualquer ou fazer um conserto na antena da TV a cabo.
- Sim. Tudo bem? E você?
O tom não foi diferente. Talvez a falta de contato, o desamparo ao qual se impuseram durante essa ausência e a indiferença que, pouco a pouco, foi se instalando entre os dois tivessem construído um abismo sem possibilidade de ponte capaz de religá-los. Havia um desconcerto, uma desarmonia que estabelecia um conflito silencioso que tomava a sala.
- Aqui estão os DVDs. Pode testá-los. - falou secamente.
Ele liga os aparelhos e começa a testar os DVDs. Agora já não se tratava mais de amizade, lembranças, vivências etc. Tratava-se de um negócio e ele não gostaria de sair perdendo. Um a um, com cautela e observação cuidadosa, os DVDs iam sendo testados. Nenhuma palavra foi dita. As vozes desencarnaram e o ambiente foi se tornando cada vez mais opressivo, pois o conflito instalado assumia proporções ainda maiores. Desbordava. Não sabendo devolver o DVD à capa e fechá-la, atrapalhou-se e recebeu uma ajuda mecânica. Na verdade, não sabiam mais o que eram, quem eram e o que significavam. Estavam perdidos no espaço da amizade que se dissipava, escapava-lhes por entre dedos, dentes, cabelos. O teste acabou. Sentados e confusos, entreolhavam-se cientes do abandono a que tinham se infligido.
Suspensos, segregados e cada um resguardando suas fronteiras, ainda fizeram um esforço contido em direção a um diálogo que girava em torno do mesmo tema e não progredia. Fez um movimento no sentido de se retirar e não foi solicitado para que ficasse um pouco mais. À porta, a despedida estava envolta nos mesmos sentimentos que participaram da recepção. Batera a porta atrás de si enquanto o peito pesava e a cabeça dava voltas. A amizade era um passado irrecuperável e cheia de cicatrizes que não se prestavam a desaparecer. À medida que o tempo passava e organizava os DVDs, tentava recobrar o controle e pacificar as emoções que ainda ondulavam sobre sua existência. Dormiria ali mesmo na sala, pois o peso daquele conflito psicológico não permitiria que chegasse à cama.
Alguns meses após aquele episódio, recebeu outra mensagem que informava que Felipe morrera subitamente. Não sabia o que pensar, menos ainda, dizer. Não se arrependeu das palavras caladas naquele último encontro. Resignou-se e aceitou esse silêncio final como o início de uma nova forma de se relacionar com a vida.