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domingo, 25 de abril de 2010

Amizade: encontro e partilha



Certa vez, um amigo escreveu que uma verdadeira amizade ou nasce no espaço de um relâmpago ou nunca nascerá. À época, dada nossa afinidade, fiquei encantado com essas palavras e era como se, através daquela declaração, visse retratada nossa própria história de amizade. Depois dessa experiência, procurei amigos e, no encontro com cada um deles, via as palavras do meu velho amigo se atualizarem como as águas de uma fonte que parecem as mesmas, mas inauguram sua novidade a cada experiência que temos delas. Embora as palavras do meu amigo se façam presentes em cada pessoa que cativo, a experiência não é a mesma, porque cada amor de amizade é único, irrepetível e traz a permanente alegria de uma música que enche os ouvidos, um livro que dilata o coração ou um espetáculo do crepúsculo num fim de tarde. Isso não tem teoria que explique nem metodologia que diga como deve ser feito. Apenas acontece.

Perdemos a capacidade de nos admirarmos com aquilo que faz da vida o lugar da festa; a festa do encontro cotidiano, da partilha da vida e dos passos que ficam pelo caminho. Lemos O Pequeno Príncipe e esquecemos sua mensagem, embora seja urgente para os dias de hoje. Vale lembrar que, nesse livro, o ensinamento da raposa “só se vê bem com o coração” não é mero sentimentalismo, mas condição imprescindível para que sobrevivamos todos os dias nesta terra de granito. Ou recuperamos essa capacidade de nos encantarmos pela vida, pelo outro, por aquilo que faz nossos dias, ou nos perderemos todos juntos. Segundo Clarice Lispector, esta é a verdadeira experiência de salvação: amor de amizade.



Amigo é antes de tudo alguém que não julga. É alguém que abre para você uma porta que talvez, jamais, abriria para um outro.

(Saint-Exupéry)

Na minha janela uma luz ficará acesa. Os braços do amigo estarão esperando.

(João XXIII, papa)

quarta-feira, 21 de abril de 2010

Um olhar sobre o feminino na literatura brasileira


Dando sequência ao post anterior que traz considerações sobre a obra A Hora da Estrela de Clarice Lispector, trago algumas palavras sobre Francisca Júlia, expoente da literatura de autoria feminina ainda desconhecida de muitos leitores.
Francisca Júlia da Silva nasceu em Xiririca(SP) no ano de 1871. Aos 14 anos, estréia como poetisa e aos 24 anos escreve seu primeiro livro, Mármores, obra prefaciada por João Ribeiro, consagrado crítico da época. Mais tarde, no ano de 1903, publica Esfinges, onde acrescenta alguns poemas inéditos aos já editados no primeiro livro. Escreve ainda dois livros em parceria com o irmão Júlio César da Silva: Livro da Infância (1899) e Alma Infantil (1912). Colaborou com jornais como O Estado de São Paulo, Correio Paulistano e Diário Popular, e periódicos do Rio de Janeiro com destaque para as revistas O Álbum e A Semana, especialmente.
A produção literária de Francisca Júlia arrancou daquele que foi o Príncipe dos Poetas, Olavo Bilac, as seguintes palavras de elogio e reconhecimento emocionado:
“Em Francisca Júlia surpreendeu-me o respeito pela língua portuguesa, – não que ela transporte para a sua estrofe brasileira a dura construção clássica: mas a língua doce de Camões, trabalhada pela pena dessa meridional, – que traz para a arte escrita todas as suas delicadezas de mulher, toda a sua faceirice de moça, nada perde
da sua pureza fidalga de linhas. O português de Francisca Júlia é o mesmo antigo português, remoçado por um banho maravilhoso de novidade e frescura”.
A poetisa foi parnasiana e simbolista; ora escrevia de acordo com a estética característica do Parnasianismo, ora aos moldes do Simbolismo.Como autêntica representante da escola que cultuou a forma, a beleza estética e a arte clássica, esmerou-se em provar que mulher sabia fazer poesia e poesia de qualidade e, desse modo, foi comparada à tríade parnasiana formada por Olavo Bilac, Raimundo Correia e Alberto de Oliveira e assemelhou-se a Heredia com os sonetos “Dança das centauras” e “Os argonautas”. Frustrando todas as expectativas, foi em suas mãos que a lira parnasiana encontrou a perfeita concretização das condições que o Parnasianismo francês, em tese, reclamava. A esse respeito, asseverou o crítico Péricles Eugênio: “(...) com efeito, é plástica e sonora; a poetisa professou a arte pela arte, conheceu o 'mot juste', desejou a austeridade formal e sobretudo timbrou em ser impassível, coisa de que os outros parnasianos brasileiros não fizeram questão”.
A despeito da singularidade da sua obra, Francisca Júlia não ocupa o lugar de destaque que lhe é devido nos livros didáticos, história da literatura e antologia literária. O desconhecimento da exímia poetisa é quase que completo nos cursos do ensino fundamental, médio e superior. Pesquisas realizadas em bibliotecas da cidade de Garanhuns(PE) dão provas suficientes do esquecimento dessa que foi um marco na literatura de língua portuguesa e que fez o prefaciador dos seus livros, João Ribeiro, declarar:
“Nem aqui, nem no sul nem no norte, onde agora floresce uma escola literária, encontro um nome que se possa opor ao de Francisca Júlia. Todos lhe são positivamente inferiores no estro, na composição e fatura do verso, nenhum possui em tal grau o talento de reproduzir as belezas clássicas com essa frieza severidade de forma e de epítetos que Heredia e Leconde deram o exemplo na literatura francesa”.
O silenciamento a que a mulher do século XIX foi submetida se estende aos dias atuais quando vozes poéticas, como a de Francisca Júlia, desaparecem do cenário da literatura brasileira, das bibliotecas, escolas, universidades e da memória do povo.
Sobre os versos cuidadosamente arquitetados pela “Musa Impassível”, afirmou Júlio Ribeiro, “sua poesia enérgica, vibrante, trazia a veemência de sonoridades estranhas, nunca ouvidas, uma música nova que as cítaras banais do nosso Olimpo nos haviam desacostumado”. Abaixo, um pouco da poesia de Francisca Júlia:

MUSA IMPASSÍVEL I

Musa! um gesto sequer de dor ou de sincero
Luto jamais te afeie o cândido semblante!
Diante de um Jó, conserva o mesmo orgulho, e diante
De um morto, o mesmo olhar e sobrecenho austero.

Em teus olhos não quero a lágrima; não quero
Em tua boca o suave o idílico descante.
Celebra ora um fantasma angüiforme de Dante;
Ora o vulto marcial de um guerreiro de Homero.

Dá-me o hemistíquio d'ouro, a imagem atrativa;
A rima cujo som, de uma harmonia crebra,
Cante aos ouvidos d'alma; a estrofe limpa e viva;

Versos que lembrem, com seus bárbaros ruídos,
Ora o áspero rumor de um calhau que se quebra,
Ora o surdo rumor de mármores partidos.

Mármores (1895)

sábado, 17 de abril de 2010

Uma leitura da construção de gênero em A Hora da Estrela



O romance A Hora da Estrela, escrito por Clarice Lispector em 1977, representa uma inovação estilística e de conteúdo ao se deslocar do universo íntimo para a realidade objetiva e tocar, desse modo, questões sociais de maneira mais explícita e declarada. O próprio narrador-personagem, Rodrigo S.M., afirma que se trata de história exterior e explícita (HE, p.33). A personagem-protagonista criada por Rodrigo S.M. chama-se Macabéa, mas atende por Maca, alusão aos macabeus, personagens bíblicas. Nordestina oriunda do estado de Alagoas, muda-se para o Rio de Janeiro onde alimenta o sonho de ser estrela de cinema e tem em Marylin Monroe sua referência de beleza e status social. Divide um quarto de pensão com quatro moças que paga trabalhando como datilógrafa. Namora Olímpico de Jesus, também nordestino, que trabalha como metalúrgico e aspira ascender socialmente. No decorrer da narrativa, Macabéa perde Olímpico para Glória, sua única amiga, pois esta possuía os atrativos materiais ambicionados por ele. A hora da estrela para Macabéa se dá quando é atropelada por um Mercedez Benz.
No romance de Clarice Lispector, Macabéa e Olímpico são representantes dos papéis atribuídos ao longo da história a homens e mulheres e que, por sua vez, têm na baliza de verniz sócio-cultural os parâmetros bem delimitados da sua construção. Macabéa é mulher, nordestina, medíocre, solitária, submissa e virgem. Olímpico é homem, nordestino (logo, cabra da peste), esperto, ambicioso e dominador. Essas características não são dadas por acaso, mas obedecem a toda uma lógica sócio-cultural-discursiva que tem origem no chão social em que pisam as personagens.
Macabéa é uma desconhecida de si mesma. Ignorante de sua identidade, ela não se conhece senão de ir vivendo à toa (HE, p. 35). Aprendeu a ser assim, como é. Nunca se perguntou: quem sou eu?, e se um dia o fizesse cairia estatelada e em cheio no chão (HE, p.36). Os tijolos que compõem seu edifício pessoal e sua feminilidade não foi ela quem os colocou, antes foram colocados pelos discursos que a gestaram, conceberam e ensinaram a ser como é, incompetente para a vida. Faltava-lhe o jeito de se ajeitar. Só vagamente tomava conhecimento da espécie de ausência que tinha de si mesma. Se fosse criatura que se exprimisse diria: o mundo é fora de mim, eu sou fora de mim” (HE, p.45). Ela é indiferente e ignora a própria identidade porque não a construiu nem foi-lhe dada oportunidade de participar desse processo. Ela não nasceu de si, mas da convenção social que a aguardava antes mesmo de vir ao mundo. Esse mundo fora dela já definira para si seu lugar social, suas atribuições profissionais (vale lembrar que ela é datilógrafa) e seu comportamento, (...) ela é doce e obediente (HE, p.47).

As implicâncias de gênero se fazem sentir a princípio no seu nome abreviado, Maca. Esse apelido é, “graficamente, quase idêntico à Maçã, sem os adornos sinuosos do til e da cedilha” (SÁ, 2000:271). Apesar de não trazer os enfeites gráficos da palavra maçã porque ela era subterrânea e nunca tinha tido floração (HE, p.52), a semelhança remete-nos ao fruto proibido que, segundo o relato bíblico, levou à queda de todo o gênero humano quando Eva e Adão o comem. Ambos pecam e são expulsos do paraíso, mas é sobre a mulher que recai o estigma da fraqueza moral. A culpa é culpa da mulher e não do homem. Macabéa traz esse estigma, de certo modo, representado na abreviatura do seu nome e entranhado nas vísceras da sua parca existência.
Após a morte de seus pais, ela passa a viver com uma tia que, além de maltratá-la, ensina-lhe a cartilha do comportamento social adequado às mulheres, de modo que, do contacto com a tia ficara-lhe a cabeça baixa (HE, p.50) e se lhe dava cascudos na cabeça era por que considerava de dever seu evitar que a menina viesse um dia a ser uma dessas moças que em Maceió ficavam nas ruas de cigarro aceso esperando homem (HE, p.49), além de que a queria para varrer o chão (HE, p.54). Assim sendo, Macabéa é talhada para ser ingênua, inocente e obediente. Seu mérito está em baixar a cabeça e obedecer resolutamente. Ela torna-se mulher na medida em que se enquadra pouco a pouco nos padrões sociais pré-determinados para aquelas que dividem consigo o mesmo chão. Age de modo automático, mecânico, irracional, ao ponto de esse não-saber pode parecer ruim mas não é tanto porque ela sabia muita coisa assim como ninguém ensina cachorro a abanar o rabo e nem a pessoa a sentir fome; nasce-se e fica-se logo sabendo (HE, p.50). Macabéa, embora o fato de vir a ser uma mulher não pertencesse à sua vocação (HE, p.49), aprendia, pouco a pouco, a sê-la.
Macabéa vê desfilar nas páginas da sua vida o discurso que a sociedade androcêntrica produz sobre a mulher, e introjeta a imagem construída por seus dominadores. A normatização e o controle social exercido sobre sua feminilidade faz com que se revista dos símbolos sócio-culturais que identificam o feminino na história. Sua satisfação está em reproduzir cotidianamente o papel imposto pela “casta” superior e concretizar na sua existência rala o projeto identitário silenciosamente gestado no útero da cultura. Rodrigo S.M. diz-nos que só depois é que pensava com satisfação: sou datilógrafa, e virgem, e gosto de coca-cola. Só então vestia-se de si mesma, passava o resto do dia representando com obediência o papel de ser (HE, p. 58).
A Hora da Estrela é um livro merecedor de releituras que, longe de esgotá-lo, abrem para possibilidades de sentidos ainda não desvelados.

sábado, 10 de abril de 2010

Quando a leitura é proibida


Embora já faça algum tempo, a notícia do recolhimento de 136.000 exemplares do livro Aventuras Provisórias das escolas públicas de Florianópolis ainda ressurge em minha cabeça e incomoda como um indesejável espinho no pé. O livro é do escritor catarinense Cristovão Tezza e ganhou vários prêmios que notabilizaram a obra e projetaram o nome de Tezza no cenário literário nacional. Até então, conhecia Tezza apenas pelos artigos publicados no campo da Linguística. Ele tem reflexões notáveis sobre o pensamento do filósofo russo, Mikhail Bakhtin. Trago essa memória para retomar um tema já tratado em outro post: o controle da instituição escolar sobre os livros e a leitura. Esse controle estende-se aos sentidos permitidos e legitimados pela instituição em detrimento daqueles considerados errados, toscos, desviantes ou subversivos.
A Gerência Regional de Educação do Sul de Santa Catarina justificou dizendo que o livro trazia muitos palavrões e descrevia atos sexuais. O que poderia ser uma justificativa tranquilizadora tornou-se alvo de inúmeras críticas que passaram pelo despreparo dos professores em discutir com os alunos do Ensino Médio da educação pública questões que são recorrentes na escola, bem como as novas formas de censura. Li vários posts em blogs literários que versavam sobre o assunto. Pensando cá com meus botões, acrescento uma outra motivação que não se encaminha pelo despreparo da escola e do corpo docente em lidar com o conteúdo da obra nem pela censura, mas pelo controle ideológico que se quer impor a qualquer tipo de comportamento subversivo que influencia atitudes que ameaçam desmantelar a ordem vigente. É isso que, de certo modo, encontra-se virtualmente presente na prática de falar palavrões: a ruptura com o instituído. O que estou focando aqui não é a prática em si, mas aquilo que ser quer evitar ao reprimir uma determinada prática ou proibir que se entre em contato com ela, mesmo que seja no universo literário. Não quero pôr em discussão o juízo de valor (correto/incorreto; moral;imoral/educado/mal educado) que socialmente se faz da prática de falar palavrões. Minha intenção é fazer refletir acerca dos mecanismos de controle e manutenção de uma ordem que se perpetua pela reprodução de práticas e conceitos que nunca são questionados nem subvertidos. O palavrão é justamente aquela ação que subverte uma ordem que não se quer ver alterada, transformada, abalada. Nesse caso, evitar o palavrão ou o contato com ele é apenas representativo de um mecanismo de poder que quer a todo custo, como diria Foucault, tornar os corpos dóceis, servis, adequados, e facilmente manipuláveis. Assim sendo, permitir que alunos em formação entrem em contato com personagens que subvertem um determinado estado de coisas ou uma norma social é prepará-los para futuras atitudes subversivas; é despertar neles a consciência de que aquilo que parece ser a ordem natural e peremptória para todos é passível de resistências e transformação. A fim de que isso não aconteça, a escola, instituição reprodutora da ideologia dominante, vigia e higieniza o ambiente escolar e a cabeça dos alunos para que a ordem estabelecida pelas classes dominantes prossiga entre nós sem problemas.



É uma pena que os alunos do Ensino Médio de Florianópolis tenham, entre outras coisas, perdido a oportunidade única de aprenderem com a literatura - e com os palavrões trazidos para a reflexão séria e consequente - a fantástica possibilidade que todo humano carrega de recriar aquilo que está posto, estabelecido como a única realidade possível. Embora queiram nos fazer acreditar que "sempre foi assim e assim deve ser pelos séculos vindouros", a arte literária nos coloca diante de uma outra porta: aquela que nos mostra que somos essencialmente seres de protest-ação na definição de Leonardo Boff e capazes de um mundo possível, mesmo que uma "aventura provisória." É apenas uma leitura (entre outras possíveis).