Total de visualizações de página

terça-feira, 25 de março de 2014

Um amigo (ou sobre a amizade)

L´AMITIÉ PARTICULIER


O título do post e do texto foi inspirado no livro Uma aprendizagem (ou o livro dos prazeres) escrito por Clarice Lispector. A narrativa apresenta a história de amizade entre Lóri e um professor de filosofia. Esse texto é sobre amizade, uma amizade particular.
Conheci Gustavo quando voltava de um congresso do Grupo de Estudos Linguísticos do NE que aconteceu em João Pessoa (por mera coincidência, recebi hoje uma circular do GELNE para participar do próximo encontro). Poderia ter seguido viagem e desembarcado em Garanhuns - cidade onde residia à época - mas não o fiz. Assim, decidi passar o fim de semana no Recife. À noite, encontrei amigos na Galeria Joana D´Arc e Gustavo estava entre eles. Ele começara a sair com meus amigos há pouco tempo. Parecia acanhado, media as palavras, tocava nos temas com polidez, mas sempre com simpatia. Durante o fim de semana, combinamos outros encontros e, no espaço de um relâmpago, descobrimo-nos amigos. Regressei a Garanhuns. A saudade daqueles dias se arrastavam, mas era amenizada pelos contatos frequentes que fazíamos a fim de manter a amizade e nos salvarmos da solidão que o psicólogo Rollo May identificou como sendo o mal do século XX. Vivíamos um momento de transição, pois nos conhecemos em 2005. Os maus ventos do séc. XX ainda sopravam sobre nós o hálito gélido da solidão que só a amizade sincera e leal seria capaz de nos manter salvos dela, como afirmara Clarice Lispector no conto Uma Amizade Sincera: "amizade é causa de salvação." Assim, de frases soltas, evasivas, contextualizadas, invasivas e objetivas, fomos estreitando um laço que nos humanizava e levava a horas a fio de conversa que passavam por seu amor aos quadrinhos, seus conhecimentos sobre cinema e literatura, língua inglesa, perspectivas de um futuro que já tínhamos por certo que não nos visitaria. Nas conversas que se desenrolavam durante 2 ou 3 horas, sempre aos domingos à tarde, Guga comentava músicas da safra brasileira e seu rico acervo cultural deixava-me encantado e, simultaneamente, desajeitado. Enquanto ele discutia "ah! Esse cara tem me consumido. A mim e a tudo que eu quis com seus olhinhos infantis como os olhos de um bandido", eu, metido a intelectual de botequim, comentava trechos dos livros que tratavam da Análise do Discurso Francesa, pois, à época, estava preparando-me para uma seleção de doutorado. Recordo que a Oi colaborou bastante com nossos encontros vespertinos quando lançou uma campanha que era possível fazer ligações interurbanas gratuitas aos domingos de orelhões públicos. O encontro tinha lugar e horário marcados. Às 2h do domingo, britanicamente pontual, eu estava na praça com o fone em mãos para iniciar uma nova rodada de conversa que lembrava as cenas arrastadas dos filmes de Michelangelo Antonioni. Continuávamos o papo por MSN, mas ouvir a voz melodiosa, com acentos recifenses autênticos e de agradável sonoridade era uma experiência da qual não me furtava. Além disso, compartilhávamos músicas via celular, pontos de vista sobre filmes dos quais apenas conhecia a história e o título. Em se tratando de cinema, Gustavo não perdoava essa mesquinhez das minhas informações e perguntava: quem é o diretor? qual o ano de produção? À época, estava cagando e andando para essas coisas, mas ele insistia que essas informações eram fundamentais para entender o todo da obra. E foi me colocando contra a parede que passei a buscar informações adicionais sobre a Sétima Arte. O resultado disso foi uma paixão avassaladora pelo cinema. Numa outra oportunidade, passamos horas discutindo o pequeno trecho de uma música de Vanessa da Mata. Lembro que não chegamos a um consenso, mas as discussões em torno de temas que nos interessavam e eram comuns deixávamo-nos cada dia mais encantado ante o caminho que construíamos sem perder de vista aquilo que nos limitava e, de certo modo, impunha limites à plena realização do desejoso amistoso que nos ardia. Nossos encontros pessoais eram esporádicos, mas sempre cheios de atenção, delicadeza e olhares silenciosos que denunciavam os riscos do amor que não ousa dizer seu nome, tal como afirma Oscar Wilde em seu De profundis. A troca de palavras cotidiana fez com que mencionasse o filme nacional Cinema, aspirinas e urubus. De pronto, fui intimidado a assisti-lo. A película fala da construção de amizade entre dois homens que de tão diferentes acabam compartilhando os mesmos objetivos e sonhos. Era isso que Gustavo queria para nós dois.
O que me chama atenção e inquieta é que terminamos da mesma maneira que começamos. A última vez que o vi foi no meu apartamento e veio para deixar uma coleção do célebre Charlle Chaplin. Quando bati a porta atrás de mim, alimentava outras perspectivas que não a da morte. Enquanto caminho neste mundo e traço minha história, permito que aquilo de Gustavo que se incorporou ao meu acervo existencial permita a manutenção de uma memória. Certo que um dia também deixarei esta vida - louca e breve - perpetuo nessas linhas que escrevo a grandiosidade de uma pessoa que acrescentou à minha vida um olhar feito de aceitação, ternura e complacência. Gustavo não se empenhou em outra coisa que não fosse me fazer feliz. Não obstante as pedras que se interpuseram, eu conservei na memória somente os aspectos positivos de uma amizade que desconhecia a mesquinhez, caretice e estupidez na qual estamos todos imersos. Um dia, minha memória também fenecerá com este corpo que definha, mas palavras se mantém sempre acesas como a tocha que lembra o soldado fiel na cidade de Rosario (Argentina) e não se apagam jamais. Ás vezes quero acreditar - e penso que isso é bastante egoísta da minha parte - que Guga deixou este mundo no momento certo. O momento é outro e já não celebramos paz e amor como fazíamos no início do século. Passando a limpo, as pessoas estão mais mesquinhas, burras, caretas e estúpidas do que nunca. Guerras explodem todos os dias e nós vivenciamos a instabilidade de uma sociedade que perde o rumo, o equilíbrio - equilíbrio distante -, diz o título do álbum solo em italiano de Renato Russo. Tudo por aqui está muito diferente, Guga. As pessoas continuam e, hoje mais do que nunca, preocupados com o que o homem faz do seu pinto, mas não é capaz de se mobilizar contra a fome na África que dizima todos os dias milhares de pessoas. Isso é tão incoerente com nossa evolução social, histórica, tecnológica e científica que se torna cada vez mais difícil encontrar pessoas que, como você, assumem com autonomia seu próprio corpo, desejos e individualidade. Diante de tanta caretice, fica difícil insistir com os dois pés num mundo cada vez mais insuportável. Não tive tempo de confidenciá-lo que estou me preparando para fazer doutorado na França. Sei que não tem dúvida acerca da minha relação afetiva e intelectual com este país. Se acontecer, passarei dois anos em Grenoble - Rhône-Alpes. Quem sabe a cura não esteja no alpes brancos ou no azul intenso das águas de Côte d´Azur? Talvez seu rosto se delineie na neve intensa dos alpes. Por enquanto, "eu continuo aqui com meu trabalho e meus amigos e me lembro de você dias assim: dia de chuva, dia de sol." A cada lembrança, lágrimas insistem em inundar um rosto que já não é mais o meu. Nas escolas, no trajeto para chegar às escolas, enquanto miro o mar, no silêncio do meu escritório, as lágrimas testemunham meu desalento, mas quero sorver minha dor até a última gota. A última vez que nos vimos - parece uma ironia da vida - você esteve no meu apartamento para deixar uma coleção do Charlie Chaplin. A saudade e o sentimento de ausência é ainda maior porque grande foi a afabilidade com que nos fizemos amigos. Nossa história de amizade foi, como diz o título do primeiro e único filme do dramaturgo francês, Jean Genet: un chant d´amour. Concluo com as linhas místicas de Tagore que abrem este blog:
Se não falas, vou encher o meu coração com o teu silêncio e aguentá-lo. Ficarei quieto, esperando, como a noite em sua vigília estrelada com a cabeça pacientemente inclinada. A manhã certamente virá; a escuridão se dissipará, e a tua voz se derramará em torrentes douradas por todo o céu. Então as tuas palavras voarão em canções de cada ninho dos meus pássaros, e as tuas melodias brotarão em flores por todos os recantos da minha floresta. (Rabindranath Tagore)