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sexta-feira, 25 de outubro de 2013

O BUDISMO É UMA RELIGIÃO?


Por Michael McGhee, The Guardian, 07.10.2013. Michael McGhee é pesquisador sênior honorário no departamento de filosofia da Universidade de Liverpool e colunista no jornal britânico The Guardian.
Na primeira parte de uma nova série, examinamos a razão de muitos considerarem as práticas budistas mais filosóficas do que religiosas.
O que me atraiu inicialmente no budismo, nos anos que se seguiram ao meu lento afastamento do cristianismo formal, não foi nada de cunho intelectual, mas, diferentemente, teve relação com a imaginação, com imagens de liberação. Fiquei impressionado com a serenidade da figura do Buda, a sua representação de autodomínio e calma. Havia, no entanto, certo perigo envolvido nisso, a tentação de absorver, de modo demasiado fácil e precipitado, uma atitude que dependia de uma luta árdua e muitas vezes destituída de apelo ou atração evidente. No entanto, o Budismo era atrativo e parecia ser um meio de redescobrir alguma coisa aparentemente perdida, sem requerer adesão cega a crenças metafísicas ou religiosas.
Acho que o que faltava era a “espiritualidade”. Mas isso levanta a questão de saber se a “espiritualidade” pode ser separada daqueles comprometimentos em termos de crenças. Alguns especialistas têm enfatizado que não há falta de crenças metafísicas nas tradições budistas e que suas práticas e rituais se articulam a visões de mundo complexas e sofisticadas. Eles se perguntam se as práticas budistas realmente podem ser isoladas desse contexto mais geral sem que com isso ocorram danos à sua identidade. Eles indagam também se os Budismos encontrados no Ocidente contemporâneo tornaram-se desenraizados, privados do alimento necessário proveniente de suas raízes culturais e metafísicas. É bem possível que isso tenha ocorrido. Assim, as pessoas testemunham o valor terapêutico da meditação e o Serviço Nacional de Saúde do Reino Unido (NHS/UK) se coaduna melhor com uma psicoterapia baseada na atenção plena (mindfulness), do que com aquela que faz uso da prática cristã da oração, porque a primeira é uma técnica eficaz, com benefícios mensuráveis para a saúde e não é “religiosa”. Os pacientes não precisam de um fundo de crença religiosa para se estabelecerem em um local de meditação.
Alguns grupos contemporâneos fazem questão de insistir que o budismo não é “religioso” e o que eles parecem sugerir é, novamente, que o envolvimento em suas práticas não depende da adesão a crenças. Esses mesmos grupos, no entanto, também são bastante tradicionais nas suas linguagens e nos seus rituais e isso deve nos fazer hesitar quanto à avaliação do efetivo grau de desenraizamento das práticas. É verdade que muitos praticantes budistas contemporâneos têm feito um trabalho desconstrutor de mitos semelhante ao realizado pela geração prévia dos teólogos da “Morte de Deus”, os quais foram, eles próprios, acusados de converter o Novo Testamento em um inofensivo e pálido humanismo.
Contudo, uma coisa é buscar liberar a prática budista de visões de mundo insustentáveis ou pouco críveis, outra, bem diferente, é reduzi-la a uma mera técnica, ainda que de cunho terapêutico. Feita a redução, as acusações costumeiras aparecem: a meditação seria uma técnica de tranquilização – capaz de facilitar a execução do bombardeio ou de aguçar a eficiência de um capitalista predatório. A razão pela qual alguém pode querer sustentar que a meditação tem sido reduzida a uma técnica é que ela perdeu o seu enraizamento essencial como uma prática de preparação ética.
É tradicional distinguir aspectos ou formas de meditação em termos das que acalmam o egocentrismo ou as paixões comuns e dizer que estas preparam o praticante para a experiência budista essencial da iluminação ou despertar. No entanto, uma das tentações de ex-cristãos é pensar que o que eles podem encontrar no budismo é algum tipo de experiência transcendente. Isso, efetivamente, parece muito com certa nostalgia de Deus. Na verdade, se houver qualquer tipo de transcendência no budismo é uma questão de transcender o fechamento e a prisão do egocentrismo. O apaziguamento das paixões, em que o budismo está interessado, é a tranquilização que reduz o domínio daqueles sentimentos auto-centrados e egoístas que nos impedem de ver o que está diante de nós: a nossa própria condição real e a dos outros. Estamos cercados pelo mundo real, mas estamos preocupado demais – com nossas próprias paixões auto interessadas – para perceber isso.
Nesse caso, a prática budista torna-se uma forma de preparação ética, reduzindo as formas de preocupação auto-centradas que impedem uma preocupação com a justiça. Este aspecto levou alguns analistas a dizer que o budismo se apresenta mais como uma filosofia de vida do que como uma religião. Este contraste com a religião se baseia muito na assimilação da religião à crença religiosa e esquece os aspectos cerimoniais, rituais e comunitários das várias religiões, incluindo o Budismo.
Mais positivamente, porém, pensar o budismo como uma filosofia coloca essa tradição em diálogo com a antiga concepção da filosofia, que tinha como um dos seus componentes essenciais precisamente o que era chamado de prática ou exercício espiritual – as várias maneiras pelas quais alguém é capaz de libertar-se da ilusão e tornar-se mais capaz tanto de agir eticamente como, naturalmente, de recusar-se a agir, lastreado igualmente em motivos éticos. Vale a pena notar que os antigos filósofos tentaram viver em comunidades e pode-se pensar em uma comunidade filosófica – seja ela uma congregação cristã, uma sanga budista ou um grupo humanista – enquanto empreendimento voltado a proteger e apoiar as condições da percepção lúcida do mundo, transcendente das ilusões, a partir da qual pode emergir a ação moral.
Tradução de Sérgio Ferraz

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