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domingo, 28 de março de 2010

Quando a natureza mata



Outro texto que vale uma leitura atenta é este da escritora Lya Luft.

Quando a natureza mata

Menina do interior, tive a natureza como presença enorme em torno de casa e por toda a pequena cidade: paisagem, abrigo, fascinação, surpresa, escola de permanência, e também de transitoriedade. Mantive um laço estreito com esse universo, e quando posso durmo de janelas e cortinas abertas, para sentir a respiração do mundo. Porém, cedo também também aprendi que a mãe natureza pode ser cruel. Granizo perfurando folhas e arrasando a horta, geada castigando flores, raios matando gente. De longe, ouvia falar em terremoto, quando o vasto mundo ainda era distante. Agora que o mundo ficou minúsculo, porque o Haiti arrasado, o Chile destruído e a Europa nevada estão ao alcance do meu dedo no computador ou no controle da televisão, a velha mãe se manifesta em estertores que podem ser apenas normais (o clima da Terra sempre mudou, às vezes radicalmente, antes de virmos povoar este planeta), mas também podem ser rosnados de protesto, "ei, que estão fazendo comigo essas pequenas cracas que se instalaram sobre minha pele?"
Mas a natureza nao mata apenas com enchentes, deslizamentos, terremotos e tsunamis. Mata pela mão dos humanos, o que pode parecer um fato em escala menor, mas é bem mais preocupante. Homens, mulheres, e meninos-bomba quase diariamente se explodem levando consigo dezenas de vidas inocentes: pais de família, mães ou crianças, mulheres fazendo as feiras, jovens indo para a escola. Bandidos incendeiam um ônibus com passageiros dentro: dois morrem logo, outros vários curtem em hospitais o grave sofrimento dos queimados. Não tinham nada a ver com a bandidagem, estavam apenas indo para o trabalho, ou vindo dele. Assaltantes explodem bancos em cidades do interior antes tranquilas. Criminosos sequestram casais ou famílias inteiras e os submetem aos maiores vexames e terror. Como está virando costume, a gente agradece por escapar com vida.
Duas mães deixam num barraco imundo cinco crianças, algumas com menos de 6 anos. Sem comida, sem força, sem presença, sem a menor higiene. O policial que se encontra leva duas menorzinhas para casa, onde sua mulher lhes dá banho e comida. As crianças, de tão fracas, mal conseguem se alimentar. O homem chora: tem três filhos pequenos, e há algum tempo perdeu uma filhinha. A maldade humana agride até esse homem que com ela deve ter frequente contato.
A natureza, da qual fazemos parte, mata com muito mais crueldade através de nós do que através do clima ou de movimento de terra, e de maneira bem mais assustadora: pois nós pensamos enquanto prejudicamos nosso semelhante. Temos a intenção de atormentar, torturar, matar, mesmo que em vários casos seja uma consciência em delírio - estamos tão drogados que achamos graça de tudo. Mas somos responsáveis por nos termos drogados.
De modo que, como me dizia um amigo, o ser humano não tem jeito, não. Ou: esse é o nosso jeito, a nossa parte na natureza. De um lado, os cuidadores, que vão de pais e mães até médicos e enfermeiras; do outro lado, os destruidores, que são os bandidos, mas também (que tristeza) eventualmente pais e parentes. E contra eles, tanto ou mais do que contra a natureza não humana, somos impotentes. O que faz a criança diante do abandono materno? Em relação ao pai, tio ou irmão estuprador? O que fazem passageiros de um ônibus, pacíficos e cansados, diante do terror imposto por bandidos? Nada. Migalhas humanas soterradas por maldade e frieza, como num terremoto ou tsunami somos soterrados pela lama, pelos destroços, pelas águas.
Resta filosofar um pouco: de que vale a vida, quanto vale a minha, e como a usamos, se é que pensamos nisso? Pensar pode ser meio chato, e ainda por cima traz alguma inquietação. A natureza poderosa, encantadora e cruel também somos nós: que a gente não fique dos lado dos animais assassinos, como a orca, que depois de matar três pessoas continua, como foi anunciado, "fazend parte do time", no parque americano.
Antes de usar um adesivo "salve as baleias", eu quero um adesivo "salve as pessoas, que são parte da natureza."

LUFT, Lya. Quando a natureza mata. In: Revista Veja, ed. 2156, 2010.

6 comentários:

Leila Silva disse...

Olá,

Aproveitei feriado para passear pelos blogs, não tenho tido tanto tempo quanto gostaria para esses passeios no meu dia a dia.

Virei sempre que puder.
Abraço e obrigada por me seguir.

Sonia Pallone disse...

Esse post está bem em sintonia com o que estamos presenciando no Rio de Janeiro. Catástrofes que matam e a culpa é de quem?... Beijos querido, bom estar aqui.

Guilherme Rossini disse...

A Lya sabe dizer as coisas né... Não dá nem para esses eco-romãnticos materialistas virem esbravejar.

Luciano Azevedo disse...

Sonia, penso que cada um deve assumir sua parcela de culpa nesse desequilíbrio que tem trazido as consequências que temos acompanhado em todo o mundo. Somos todos responsáveis pela nossa Casa Comum: a Terra. Bjo e obrigado por sua visita!

Luciano Azevedo disse...

Guilherme,
fiquei curioso em saber o que esbravejam os eco-romântico materialistas. Valeu a visita!!

redonda disse...

Costumo ler o que a Lya Luft escreve na Veja. Gosto de como escreve.
(cheguei até aqui pelo link do Crónicas do Rochedo)