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sábado, 17 de abril de 2010

Uma leitura da construção de gênero em A Hora da Estrela



O romance A Hora da Estrela, escrito por Clarice Lispector em 1977, representa uma inovação estilística e de conteúdo ao se deslocar do universo íntimo para a realidade objetiva e tocar, desse modo, questões sociais de maneira mais explícita e declarada. O próprio narrador-personagem, Rodrigo S.M., afirma que se trata de história exterior e explícita (HE, p.33). A personagem-protagonista criada por Rodrigo S.M. chama-se Macabéa, mas atende por Maca, alusão aos macabeus, personagens bíblicas. Nordestina oriunda do estado de Alagoas, muda-se para o Rio de Janeiro onde alimenta o sonho de ser estrela de cinema e tem em Marylin Monroe sua referência de beleza e status social. Divide um quarto de pensão com quatro moças que paga trabalhando como datilógrafa. Namora Olímpico de Jesus, também nordestino, que trabalha como metalúrgico e aspira ascender socialmente. No decorrer da narrativa, Macabéa perde Olímpico para Glória, sua única amiga, pois esta possuía os atrativos materiais ambicionados por ele. A hora da estrela para Macabéa se dá quando é atropelada por um Mercedez Benz.
No romance de Clarice Lispector, Macabéa e Olímpico são representantes dos papéis atribuídos ao longo da história a homens e mulheres e que, por sua vez, têm na baliza de verniz sócio-cultural os parâmetros bem delimitados da sua construção. Macabéa é mulher, nordestina, medíocre, solitária, submissa e virgem. Olímpico é homem, nordestino (logo, cabra da peste), esperto, ambicioso e dominador. Essas características não são dadas por acaso, mas obedecem a toda uma lógica sócio-cultural-discursiva que tem origem no chão social em que pisam as personagens.
Macabéa é uma desconhecida de si mesma. Ignorante de sua identidade, ela não se conhece senão de ir vivendo à toa (HE, p. 35). Aprendeu a ser assim, como é. Nunca se perguntou: quem sou eu?, e se um dia o fizesse cairia estatelada e em cheio no chão (HE, p.36). Os tijolos que compõem seu edifício pessoal e sua feminilidade não foi ela quem os colocou, antes foram colocados pelos discursos que a gestaram, conceberam e ensinaram a ser como é, incompetente para a vida. Faltava-lhe o jeito de se ajeitar. Só vagamente tomava conhecimento da espécie de ausência que tinha de si mesma. Se fosse criatura que se exprimisse diria: o mundo é fora de mim, eu sou fora de mim” (HE, p.45). Ela é indiferente e ignora a própria identidade porque não a construiu nem foi-lhe dada oportunidade de participar desse processo. Ela não nasceu de si, mas da convenção social que a aguardava antes mesmo de vir ao mundo. Esse mundo fora dela já definira para si seu lugar social, suas atribuições profissionais (vale lembrar que ela é datilógrafa) e seu comportamento, (...) ela é doce e obediente (HE, p.47).

As implicâncias de gênero se fazem sentir a princípio no seu nome abreviado, Maca. Esse apelido é, “graficamente, quase idêntico à Maçã, sem os adornos sinuosos do til e da cedilha” (SÁ, 2000:271). Apesar de não trazer os enfeites gráficos da palavra maçã porque ela era subterrânea e nunca tinha tido floração (HE, p.52), a semelhança remete-nos ao fruto proibido que, segundo o relato bíblico, levou à queda de todo o gênero humano quando Eva e Adão o comem. Ambos pecam e são expulsos do paraíso, mas é sobre a mulher que recai o estigma da fraqueza moral. A culpa é culpa da mulher e não do homem. Macabéa traz esse estigma, de certo modo, representado na abreviatura do seu nome e entranhado nas vísceras da sua parca existência.
Após a morte de seus pais, ela passa a viver com uma tia que, além de maltratá-la, ensina-lhe a cartilha do comportamento social adequado às mulheres, de modo que, do contacto com a tia ficara-lhe a cabeça baixa (HE, p.50) e se lhe dava cascudos na cabeça era por que considerava de dever seu evitar que a menina viesse um dia a ser uma dessas moças que em Maceió ficavam nas ruas de cigarro aceso esperando homem (HE, p.49), além de que a queria para varrer o chão (HE, p.54). Assim sendo, Macabéa é talhada para ser ingênua, inocente e obediente. Seu mérito está em baixar a cabeça e obedecer resolutamente. Ela torna-se mulher na medida em que se enquadra pouco a pouco nos padrões sociais pré-determinados para aquelas que dividem consigo o mesmo chão. Age de modo automático, mecânico, irracional, ao ponto de esse não-saber pode parecer ruim mas não é tanto porque ela sabia muita coisa assim como ninguém ensina cachorro a abanar o rabo e nem a pessoa a sentir fome; nasce-se e fica-se logo sabendo (HE, p.50). Macabéa, embora o fato de vir a ser uma mulher não pertencesse à sua vocação (HE, p.49), aprendia, pouco a pouco, a sê-la.
Macabéa vê desfilar nas páginas da sua vida o discurso que a sociedade androcêntrica produz sobre a mulher, e introjeta a imagem construída por seus dominadores. A normatização e o controle social exercido sobre sua feminilidade faz com que se revista dos símbolos sócio-culturais que identificam o feminino na história. Sua satisfação está em reproduzir cotidianamente o papel imposto pela “casta” superior e concretizar na sua existência rala o projeto identitário silenciosamente gestado no útero da cultura. Rodrigo S.M. diz-nos que só depois é que pensava com satisfação: sou datilógrafa, e virgem, e gosto de coca-cola. Só então vestia-se de si mesma, passava o resto do dia representando com obediência o papel de ser (HE, p. 58).
A Hora da Estrela é um livro merecedor de releituras que, longe de esgotá-lo, abrem para possibilidades de sentidos ainda não desvelados.

12 comentários:

Paulo Tamburro disse...

LUCIANO,

conheço a obra,quase integral desta escritora que sempre esteve na linha divisória da lucidez comum e da extraordinaria loucura criativa dos gênios.

Esta é a razão da incrível e merecida popularidade de Clarice Lispector, uma das mais elogiadas e citadas - e merecidamenete - literata em blogs na intenet.

Agora ,seu texto está realmente, compeleto e impecável.

Parabéns.

Já minha "praia" é outra , pois tenho blogs de humor e em um deles esta semana, no "HUMOR EM TEXTO", que está tendo uma inesperada aceitação, esvrevo sobre:

"QUEM DISSE QUE VOCÊ É MORMAL?" (rs)

Caso queira me dar a honra de sua visita ficarei muito grato.

Um abração carioca.

PS. Estarei sempre por aqui e vou indicar este blog ao meus alunos universitários.

Tania regina Contreiras disse...

Clarice para sempre maravilhosa!!! Olhava tuas leituras preferidas: a maioria são também minhas, Água Viva decorei de tanto ler...rsrs O Herman Hesse acompanho de mais tempo, livros de cabeceira da adolescência. Seu blog se afina com o meu som. Sigo-o.

Abraços

Anônimo disse...

Eis que venho visitar seu blog e logo de cara uma foto da Clarice. Subiu dez pontos no meu conceito, já! rsrsrs

Adorei seu texto e adorei seu blog. Volto sempre!

Beijos.

Simplesmente Outono disse...

Olá,
Vi seu comentário no blog do Geraldo e resolvi passar por aqui.
Sou apaixonada por cada vírgula desta notável mulher.
Ser presença constante por aqui só me trará prazer.
Fique certo de que já fará parte da minha estação para que assim não te perca mais de vista.
Com carinho, Simplesmente Outono.
http://www.simplesmenteoutono.blogger.com.br

Simplesmente Outono disse...

Sinta-se à vontade para voltar quando quiser. Sempre será muito bem vindo. Tenha também uma boa noite.
Com carinho.
Simplesmente Outono.
http://www.simplesmenteoutono.blogger.com.br

Lídia Borges disse...

Acabei de ler "Laços de Família".

Uma escritora que prima por uma clareza de pensamento notável.

Obrigada pela sugestão.

L.B.

Anônimo disse...

Não é sem razão que Clarice CLARICE! Ao longo de minha vida tenho relido alguns livros de Clarice, onde sempre encontro sustância vital da melhor qualidade! Beijos Luciano.
http://marliborges.blogspot.com/

Efigênia Coutinho ( Mallemont ) disse...

Luciano Azevedo, aprecio quando encontro um texto dum livro que já li e gostei, adorei chegar neste seu espaço cultural, serei sim, uma seguidora deste, com admiração,
Efigênia Coutinho
in New York

Anônimo disse...

Venho agradecer e retribuir a sua simpática visita ao meu Rochedo.
Gostei de conhecer seu blog, mas tenho de voltar com mais tempo para o explorar melhor, pois os temas aqui tratados exigem uma leitura atenta e demorada.
Voltarei breve

Sonia Pallone disse...

Concordo plenamente com você Luciano, esse é um dos meus livros de cabeceira que sempre consegue me emocionar, e cada vez que leio tenho mais e mais certeza de que Macabéa é a melhor personagem de Clarice. Achei que o filme deixou um pouco a desejar, mesmo assim, também curti muito. Um beijo grande.

Cristiano Contreiras disse...

Clarice me define, incondicionalmente.


Dela, eu gosto de A PAIXÃO SEGUNDO GH/ PERTO DO CORAÇÃO SELVAGEM(tatuei este nome em mim) e UMA APRENDIZAGEM OU O LIVRO DOS PRAZERES.

Petro disse...

Nobre Clarice...eu simplesmente não sei, não a compreendo, mas amo...sua escrita sempre. Isso é o que me deixa puto e vivo.
Grande blog...grande casa de saber.