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domingo, 30 de janeiro de 2011

Leituras do cotidiano

Os textos que por ora disponibilizo são retalhos de delicada atenção ao cotidiano em seus fragmentos e, por que não usar um termo clariceano, ao instante-já. Essas linhas de rara beleza e compreensão singular da realidade em suas facetas mais próximas foram traçadas pelo poeta e amigo Carlos Tenreiro. Conheci Carlos num momento de maturamento intelectual através de uma comunidade sobre Análise do Discurso. À época, ele, Mestre em Linguística, e eu às voltas com meu projeto de mestrado. Carlos chegou em boa hora. Suas orientações não foram poucas e, além de numerosas (lembro que o alugava por horas na internet rs), profícuas. Depois do Carlos analista de discurso, conheci o Carlos poeta. Os textos foram chegando aos poucos, mas não precisou enviar uma antologia de mil páginas para convencer que Carlos é um poeta de sensibilidade ímpar e tem um sentimento do/sobre o mundo a ser compartilhado com a humanidade. Vamos aos textos!



Foi ontem, numa tarde de sol a pino por toda parte, que recebi o rosto de Billie. Ela veio inesperada, enrodilhada de um sagrado, olhando-me lá de dentro... ao mágico de meu olho sem palavras. Quando o sentido não era polido ainda, mas espanto de um sopro de palco, mesmo que lá dentro não se soubesse ainda que Billie se resguardava de acorde e profundidade, o silêncio era sinfonia requintada, toque de misteriosa arte. Da embalagem do leito onde Billie repousava seu rosto velado, o veludo noturno latejava sol como se os pensamentos de Billie atravessassem aquele espaço curto, num traçado inesgotável. Por fora se via a inscrição de Luz, cravada no lençol pardo de uma aurora anunciada. Sim, Luz, como um selo de uma rajada, guardião das atemporalidades, orixá dedilhado.



Quando entrei em seu leito circular, túnel de astro pulsar, eu a vi: Billie, com sua pele-mar, nas margens da noite, pincelada. Deixei que Billie se derramasse pelo dia em curso. Afoguei-me em seu traçado de verde-azul-mar. Náufrago, então lhe disse: - Sim, Billie, bebi tua face. E ela, com os olhos voltados para um mistério escuro, cantava um jazz profundo, um tom de luz num canto blues noturno-escarlate.



Então, disse-lhe baixinho: - Holly Billie, Holly Day. E Billie com seu blues, confessava-me: - Dear, ‘the blues are brewin’.



Billie cantava seus ais, enquanto a natureza em torno e em canto respirava-lhe: - Billie is blowing flowers in her black blossom eyes. E todo blues e jazz saia de seus lábios petalados em tom de luz, num bom de Louis, a invadir os descampados.

(Carlos A. F. Tenreiro)




DA AVENIDA PAULISTA NO MÊS DO NATAL

De uma tarde estilhaçada de pingos, a Paulista agora, noturna e marítima, se derrama com seus vitrais natalinos pelas retinas. Enquanto as íris tilintam seus coloridos, vibra uma verdade já dita, lá, quando o tempo amanhecia: “Que o fluxo e reflexo do mar surge das ações do sol e da lua”. É noite na Paulista: mendigos e desvãos vagam obscuros pelas luzes que turvam os noturnos; nos corredores, gritos úmidos desatam seres emudecidos; sobre os concretos adornados e o nublado cinza escuro a camuflar de chuva os anis, pulsa a lua escondida; pensamentos alumbram um sol a pino; e a amizade, de algum lugar, rasgando os descaminhos, entre reflexos e fluxos, redime enfim a poesia.

(Carlos A. F. Tenreiro)

Um comentário:

TH disse...

Bem sabe o Carlos de quantas leituras a gente consegue fazer pescando das entrelinhas dos momentos do cotidiano...

Rico!