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segunda-feira, 29 de outubro de 2007

"Noite"


Há uma composição de Antônio Cícero e Orlando Morais, interpretada por Adriana Calcanhoto no CD Cantada, que tem me chamado particular atenção nos últimos dias. Comprei o CD recentemente e ouvi todas as músicas assim que cheguei em casa. A voz melodiosa e aveludada de Adriana Calcanhoto nos deixa inertes, sob o efeito letárgico dos acordes do violão e das canções magistralmente compostas. Já adormecia quando escutei as primeiras notas do piano de Daniel Jobim que encheram o quarto de uma melodia serena, nostálgica. Em seguida, Adriana começa a cantar a poesia abaixo:


Noite
Vêm lá do canal
Reverberações
Do ladrar de um cão.
Uma dessas noites
Tudo vai embora:
Leve-nos,
Ladrão.
Abre-se o sinal
Sem ninguém passar.
É melhor ser vão
Tudo o que pontua
Nossa escuridão.


Eu, atento, escutava a música como quem recolhe orvalho, ou seja, gota a gota. Silencioso e com a atenção toda voltada para a canção fui recriando imaginariamente a situação figurada que letra e som sugerem. No momento que Adriana canta "Abre-se o sinal. Sem ninguém passar" fui tomado pela imagem de alguém num carro aguardando o sinal abrir sem outros ao seu lado, sozinho. Porém, quando o sinal abre a pessoa permanece parada, pois a desilução a impedem de progredir. Ela permanece estagnada, absorta em seus pensamentos, como alguém que está prestes a desistir de si mesmo. É uma imagem doída, envolta em solidão e escuridão. O som do piano acentua esse estado de alma e favorece a construção de uma imagem triste e sofrida.

De repente, acordei do êxtase provocado pelos recursos estilísticos e sonoros da canção e lembrei do escritor australiano Morris West quando seu personagem, o papa Kiril, escreve as seguintes palavras no seu diário pessoal: "O verão aproxima-se, mas há muitos homens sós e perdidos, para quem a vida é um contínuo inverno." O personagem da música atravessa esse inverno feito de garoa e névoa que turva a visão e fecha o caminho como uma cortina de cedro.

Essas foram minhas impressões da música "Noite". Por falar nisso, adentrei a noite e nem percebi que é hora de abandonar as palavras como foi abandonado o personagem do poema. É hora de dormir e deixar que o personagem da canção e as palavras encontrem um sentido que não seja idílico nem por demais real para que continuem construindo, desejando, chorando, mas caminhando.

Um comentário:

Professora Rita disse...

A impressão de eterna "noite" parece que mais e mais vai nos absorvendo, a medida em que tomamos ciência do que foi o passado não muito longíquo e o que somos agora. Parece-me, não sei se essa percepção já passou por seus pensamentos, que quanto mais se "sabe", mais parece que não adianta muito saber...e criamos um estado de letargia... Tenho medo dos castelos de cristais; são deles que observamos tudo e não fazemos nada.
Suas palavras e sua comoção foram muito bonitas... A beleza não foi feita para ser violada, como disse o malvado filósofo. A ingenuidade de minhas palavras, de suas palavras, são a prova viva de que ainda vale a pena ver orvalhar...
Parabéns!